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Água
erótica


 As Obras

O imaginário cria imagens, mas apresenta-se sempre como algo além de suas imagens, é sempre um pouco mais que suas imagens.
Bachelard

Erótica... portanto, proibida! Proibida portanto geradora de transgressões!

Mergulhos1

Os concílios e os padres da Igreja proibiam terminantemente os banhos quentes, que julgavam imoral. Eram considerados como uma busca da sensualidade e, dessa forma, os cristãos e as cristãs deveriam manter-se afastados/as deles. As mulheres estavam autorizadas a fazer uso do banho com a condição que fosse pouco frequente. Santo Agostinho, em sua "Regra" autorizava o banho quente uma vez por mês. Já a imersão em água fria era recomendada como mortificação, que aumentava na medida em que a água fosse mais gelada. Alguns monges ocidentais excluíam não apenas os banhos, mas recusavam o uso da água.

Santo Agostinho relata, em suas Confissões, as descobertas sexuais realizadas por ele e incitadas por seu pai durante os banhos:

Ora nesta idade dos dezesseis anos, ocorrendo um intervalo de ociosidade por me ver livre de todas as aulas devido a dificuldades domésticas, comecei a viver com meus pais. Foi então que os espinhos das paixões me sobrepujaram a cabeça, sem haver mão que os arrancasse. Bem pelo contrário: meu pai, durante o banho, vendo-me entrar já na puberdade e revestido da adolescência inquieta, contou-o, todo alegre, a minha mãe, como se tal verificação o fizesse saltar de prazer com a idéia de ter netos. Era uma alegria, aliás, proveniente da embriaguez produzida pelo vinho invisível da sua vontade perversa e inclinada às coisas baixas - embriaguez com que este mundo esquece o Criador, para em vez de Vós, Senhor, amar as criaturas. Porém já tínheis começado a edificar em minha mãe o Vosso templo e os fundamentos da Vossa santa habitação. Meu pai era simples catecúmeno, recente ainda. Por isso minha mãe, com tal nova, agitou-se levada de piedosa perturbação e temor. Apesar de eu ainda ser batizado, receou que enveredasse por caminhos tortuosos por onde andam os que Vos voltam as costas e não o rosto (SANTO AGOSTINHO, 1987: p. 48).

A literatura monástica escrita pelos homens do deserto apresentava o impulso sexual como mal, mas do lado de fora das igrejas e das casas cristãs, a cidade era profana e sexualmente indisciplinada. As moças nuas faziam as delícias dos cidadãos de Constantinopla dentre as polêmicas em torno dos banhos públicos2.

Nudez festiva

Os dois ou três primeiros séculos do Império Romano foram feitos de urbanidade e de urbanismo constituindo-se num dever de bem viver. Os urbanos apreciavam a natureza em parques e jardins e também as comodidades materiais tais como os banhos públicos. Homens livres, escravos, mulheres, crianças, todos tinham acesso aos banhos, inclusive os estrangeiros. O banho não era uma prática de higiene e sim um prazer complexo. O prazer era tão legítimo, quanto a virtude. Tanto o banho quanto o vinho consumiam o corpo, mas representavam a verdadeira vida (VEYNE, 1990).

Sêneca (apud SENNETT, 1997) desprezava a terma considerando-a um espaço de auto-exibição barulhenta devido às conversações e gritos constantes. Toda cidade tinha um banho público e, se necessário, um aqueduto para alimentá-lo e alimentar as fontes públicas, pois a água a domicílio constituía uma contravenção. Diariamente o gongo anunciava a abertura dos banhos públicos e Cícero dizia que esse som era mais doce aos ouvidos que a voz dos filósofos (VEYNE, 1990).

O banho pagão tinha um ritual3 e os pobres tinham acesso a esse ambiente luxuoso, desde que pagassem alguns cêntimos. No local encontravam-se, também, campos de esporte ou de jogo. A evolução desses estabelecimentos pôde ser acompanhada pelas escavações de Olímpia. Primeiramente eram constituídos de modestos edifícios, contendo piscinas frias, banheiras para banhos quentes e banho de vapor e, posteriormente, transformaram-se em estabelecimentos de prazer, em catedrais do paganismo. Esculturas, mosaicos, pinturas, arquiteturas suntuosas ofereciam o esplendor de um ambiente real. Sua função era, não apenas possibilitar a higiene, mas abrir espaços para conversar, escutar conversas, saber de casos curiosos e exibir os corpos. Os banhos eram o lugar aonde se ia buscar calor:

A grande novidade (por volta do ano 100 antes de nossa era em Olímpia, antes ainda em Gortys na Arcádia) foi o aquecimento do subsolo e até das paredes: já não bastava aquecer a água das banheiras e de uma piscina; proporcionava-se à multidão um local fechado e quente. Nessa época em que não importava a intensidade do frio, mal havia braseiros e as pessoas ficavam em casa tão agasalhadas como na rua, os banhos eram o lugar aonde se ia em busca de calor. Nas termas de Caracala isso levará a uma "climatização" de todo o prédio por convexão do ar (Ibid., p. 194).

Os pensadores e os cristãos recusavam o prazer do banho; não tinham a fraqueza de ser limpos e só se banhavam uma ou duas vezes por mês; a barba suja de um filósofo constituía prova de austeridade e era motivo de orgulho.

Para reverenciar esse prazer complexo, a referência aos banhos aparecia também nos sarcófagos. Os arqueólogos encontraram uma centena de milhares de epitáfios que derivavam não de uma ideia elementar da morte, mas de um reinado da palavra pública, por isso deixava-se ao vivente alguma mensagem tanto no epitáfio quanto no testamento:

Vivi avaramente o tanto que me foi dado viver, por isso vos aconselho a gozar os prazeres mais do que eu. Assim é a vida: chegamos aqui, e não mais longe. Amar, beber, ir aos banhos, essa é a verdadeira vida: depois não há mais nada. Nunca segui os conselhos de um filósofo. Desconfiai dos médicos, foram eles que me mataram. (Ibid., p. 170).

Também na decoração dos sarcófagos representavam-se os mais diversos mitos. Dentre eles a nudez de Diana surpreendida no banho pelo caçador Actéon. Ártemis ou Diana - cujo nome é associado ao amor casto - se protegeu transformando Actéon em um veado, de forma que seus próprios cães o mataram, conforme referência anterior. Em quatro séculos o mundo mediterrâneo passou por grandes mudanças que afetaram os ritmos de vida, as sensibilidades morais e o sentimento dos habitantes das cidades e dos campos. Seja qual for a cidade, o fato fundamental da sociedade do Império Romano era a convicção de que existia uma distância intransponível entre as elites e seus inferiores e o corpo era a sede fisiológica do código moral dos "bem-nascidos". O corpo era o indicador mais sensível e evidente de um comportamento correto e seu controle harmonioso era mantido pelos métodos gregos tradicionais: exercício, regime alimentar e banhos.

As relações sexuais eram regulamentadas por um exigente código de comportamento público e os escrúpulos não eram em relação à sexualidade, mas ao medo da sujeição social a um inferior. O medo da efeminação e da dependência emocional, fundamentado na necessidade de manter a imagem pública de um homem realmente integrado à classe superior. As restrições morais existiam apenas para as classes superiores.

Havia indiferença em relação à nudez na vida pública romana. A nudez do atleta era um indício de posição para os "bem-nascidos". A nudez, entre os pares e diante dos inferiores, nos banhos públicos, ponto de reunião da vida cívica, era uma experiência inevitável (BROWN, 1990).

A postura de um homem, nu ou vestido, era a verdadeira marca de sua condição. Para as mulheres:

a vergonha social que haveria em se exibir de modo inconveniente constitui uma preocupação, não o simples fato de se mostrar nua: a nudez diante dos escravos é moralmente tão insignificante quanto a nudez diante dos animais; e a exibição física das mulheres das classes inferiores constitui outro sinal de sua desregrada inferioridade em relação aos poderosos. (Ibid., p. 236).

As mulheres dos homens públicos eram tratadas como seres periféricos que pouco ou nada contribuíam para o papel público de seus maridos, mundo esse exclusivamente masculino. Os homens incorriam no risco de ter o seu caráter minado pela sensualidade das mulheres, embora muitas vezes elas representassem fonte de coragem e bons conselhos em momentos difíceis. (Ibid.).

O mundo do judaísmo tardio, a partir do século II a.C., constituiu um modelo diferente de pessoa humana que mobilizava todo o eu a serviço de uma lei religiosa e tinha como ponto de partida o coração - núcleo de motivações, reflexões e objetivos imaginários; simples e transparente às exigências de Deus e do próximo. Dessa forma o coração era público ao olhar de Deus e dos anjos. Nada se fazia em segredo. Tudo era visível ao olhar divino.

Ao longo dos séculos o rabinato aceitou o casamento como critério quase obrigatório de sabedoria e os dirigentes das comunidades cristãs se orientaram no sentido oposto: o acesso aos cargos de direção nessas comunidades identificava-se com o celibato quase obrigatório.

O sexo, segundo o judaísmo, constituía um complemento da personalidade impulsiva, mas suscetível de moderação, assim como as mulheres, que eram necessárias à existência de Israel, mas não podiam opinar em assuntos masculinos. Entre os cristãos o sexo contém forte carga simbólica considerando-se que a retirada da sexualidade significava a disponibilidade para Deus e para o outro, ligado ao ideal da pessoa de "coração simples" (Ibid.).

Hermas era um profeta obcecado pelo desejo de preservar a solidariedade do "coração simples" entre os crentes. Ele próprio, porém, não o era. Escravo próspero e corrompido de uma residência citadina, testemunhou devastações provocadas pelas ardilosas relações dos "corações divididos" entre os ricos protetores cristãos, os padres e os profetas rivais. Ele experimentou uma atração sexual por sua senhora que, apesar de boa cristã, sempre esperava que ele a ajudasse a sair nua de seu banho no Tibre.

A estrutura do casamento e da disciplina sexual para as famílias cristãs nos séculos II e III indicavam a extensão das mudanças nos ideais morais ocorridos na Igreja. O médico Galeno surpreendia-se com tanta austeridade (Ibid.).

A prática dessa austeridade sexual pelos cristãos também aceita pelos pagãos, constava de renúncia sexual completa para alguns, ênfase na harmonia conjugal e severa desaprovação de um segundo casamento. Os jovens púberes deveriam casar-se o mais cedo possível a fim de controlar, graças a uma vida conjugal lícita, as tensões explosivas da atração sexual.

Não havia um segundo casamento e a comunidade tinha uma reserva de viúvos e viúvas que dedicavam seu tempo para a Igreja:

menos expostos que os notáveis às tensões ligadas ao exercício do verdadeiro poder - corrupção, perjúrio, hipocrisia, violência e furor-, esses tranqüilos cidadãos de "condição mediana" poderiam testemunhar sua preocupação com ordem e coesão na esfera mais doméstica da autodisciplina sexual (Ibid., p. 255).

O paradigma monástico, então, impôs uma carga ligada ao casamento e às relações sexuais no casamento. A história da queda da humanidade representada por Adão e Eva:

é um espelho fiel da alma dos ascetas da época: tremendo diante do envolvimento com as obrigações desastrosas da vida "do mundo", ele resolve optar pela vida "angélica" do monge. Pois no mundo rígido das aldeias do Oriente Próximo como nas famílias austeras dos cristãos citadinos, a entrada "no mundo" começa na prática por um casamento que os pais arranjam para os jovens casais desde o início da adolescência (Ibid., p. 285).

Dessa forma o paraíso só seria conquistado pelos que adotassem abstinência sexual. O sexo foi transformado então em algo temível, constituindo-se num grande medo do mundo oriental do século IV. Desde os chefes de família das classes sociais superiores até os heróicos "homens do deserto", todos deviam partilhar um código de abstenção sexual, independente de classe ou profissão. Os banhos públicos, ponto de reunião social e prazer foram atacados. Em Antióquia, João Crisóstomo:

critica o hábito das mulheres da aristocracia de exibirem a uma multidão de servos, suas carnes bem nutridas, cobertas apenas de pesadas jóias que constituem a marca de sua elevada posição. Em Alexandria os farrapos dos pobres devem provocar no crente visões perturbadoras: medo inconcebível nos séculos anteriores, em que essa nudez parcial era tida como indigna, mas dificilmente como fonte de inelutável perigo moral (Ibid., p. 287).

O sexo do casal cristão dessa época foi interpretado por Santo Agostinho que desvendou aspectos do ato sexual que pareciam trair uma profunda ruptura entre a vontade e o instinto. A ereção e o orgasmo prenderam-lhe a atenção, considerando que a vontade não atuava sobre ambos. Isto significava que todos os seres humanos sofriam a cólera de Deus a partir de Adão e Eva - uma concupiscência da carne que é o sinal da ruptura entre Deus e o homem. Essas ideias tornaram-se parte integrante do universo mental da cristandade ocidental e impuseram um rigor e uma consciência ascética da fraqueza moral do homem aos humildes chefes de família - todos participavam de uma fraqueza universal e primitiva - uma natureza sexual herdada de Adão e Eva.

De todas as batalhas dos cristãos, a maior delas era preservar a castidade. Muitos lutavam e poucos venciam.

Libido e castidade

Os banhos mantiveram-se durante algum tempo até nos mosteiros, mas reservando-se, cada vez mais, aos enfermos. A nudez só existia durante o banho e na hora de dormir. O lugar do corpo era definido pela dupla oposição - celibato contra casamento, libido exigente contra ternura casta. Nos rios e nas piscinas das estações termais, como a de Aix, Carlos Magno nadava com seus convidados, muitas vezes mais de cem pessoas.

Não havia água corrente nas casas, exceto para raríssimos privilegiados; as fontes e os banhos públicos eram alimentados pelos aquedutos. Iniciava-se, então, a inserção de moradias no tecido urbano. O funcionamento da casa dependia de arranjos coletivos que mudaram, consideravelmente, a partir da existência de uma rede de distribuição de água graças à instalação de condutores sob pressão e a presença, também, de esgotos.

O mapa das ruínas da Basílica privada de Bulla Regia atestou a presença de banhos privados nas casas. Em meados do século IV, nas modificações dos planos de moradia anexavam-se lotes e permitia-se a criação de termas, o que constituiu a remodelagem da trama urbana. Introduzia-se, no centro da moradia, uma natureza privatizada: água e vegetação permaneciam e eram privilegiados - o pátio se transformava em jardim ornado de fontes e tanques ou em piscinas decoradas com plantas. Às vezes o proprietário optava por tanques e plantas em vasos e, outras vezes usava todo o espaço como um jardim adornado de fontes. Os tanques eram adornados com temas marinhos, o que constituía uma forma de introduzir artificialmente na casa os prazeres do mar. Às vezes existiam peixes vivos numa piscina. Uma hierarquização social cada vez mais codificada e o crescimento do conforto privado remeteu ao fenômeno de privatização dos banhos e a multiplicação das termas privadas nas nobres residências africanas (THÉBERT, 1990).

Todas as cidades da África eram equipadas de banhos públicos que ocupavam um grande lugar na vida cotidiana dos habitantes. Não havia apenas um complexo programa balneário como também atividades físicas e intelectuais. Era um lugar para o exercício de diversas formas de sociabilidade e por sua amplidão era possível acolher numerosos usuários em ambientes variados:

Ao lado desses vastos monumentos tendem a multiplicar-se as pequenas termas de bairro, talvez mais acessíveis e sem dúvida adequadas a um banho mais rápido. A causa poderia ser uma evolução dos costumes, ao menos se acreditarmos no autor gaulês tardio Sidônio Apolinário, cuja observação parece possível transpor para a África. Ele nos informa que depois das reuniões entre amigos em casa de uns e outros, todos se dirigiam aos banhos, não nas grandes termas públicas, mas nos estabelecimentos concebidos de modo a proteger o pudor de cada um (Carmen, XXIII, versos 495-9). Parece, pois, que essa atitude associa a necessidade aristocrática de se manter à distância da multidão e uma nova forma de apreender o próprio corpo caracterizada pela afirmação do pudor (Ibid., p. 367).

O fenômeno da privatização do banho remeteu à hierarquização social. Quem recebia seus dependentes pela manhã já não sentia ser favorável juntar-se à eles, à tarde, numa piscina coletiva e, ainda mais, nus.

As elites, então, tornaram-se mais atentas, além da nudez, aos odores e às sujeiras, inclusive das termas públicas, inaugurando uma nova relação com o corpo redundando em maior distanciamento e uma hierarquização crescente das relações sociais. Difundem-se, nessa medida, os banhos e as latrinas domésticas resultando na privatização de um certo número de atos, na ampliação do papel do espaço doméstico (Ibid.).

O corpo feminino constituía-se um tabu. O homem e a mulher só podiam ficar nus no leito, onde eles procriavam. O nu era sagrado. Se um homem livre tocasse uma mulher devia pagar multas em soldos:

Os textos de alguns penitenciais revelam que durante cerimônias pagãs a moça ou a mulher se desnudava completamente a fim de provocar a fecundidade dos campos, a chuva, etc. Tocar uma mulher significava, portanto, atentar contra o processo da vida (ROUCHE, 1990: p. 438).

A mulher só era levada em consideração enquanto mãe. Quando acontecia de uma criança nascer com deficiência, esta era considerada resultado da cólera dos deuses, pois a mulher tinha tido relações, por exemplo, numa noite de Domingo em dia consagrado.

O parto representava a feminilidade e o homicídio a virilidade. A educação do menino passava pelo esporte e pela caça e seu início dava-se após o primeiro barbear do rapaz. O crescimento do pêlo era a prova de que, uma das qualidades fundamentais do homem, a agressividade, podia ser cultivada. A caça era o treinamento mais importante e criava um elo com a morte4.

Enquanto a caça criava um elo com a morte, a pesca5 era ligada à vida e simbolizava o alimento de paz, dos homens sem armas - os monges. Isso em decorrência de suas origens aquáticas, fonte da vida e também ligada ao mundo feminino. A pesca era tida como anticaça e a nobreza julgava tal atividade aviltante (Ibid.).

O peso da violência, o medo do sexo e da morte criavam uma culpa surda. Embora rigorosamente proibida a magia tornou-se o domínio ideal do sagrado:

A relação individual com a esfera divina torna-se, com efeito, preeminente quando o cristianismo triunfa sobre o paganismo. A intimidade e a interioridade transformam-se em categorias mentais de conteúdo novo. O sagrado pagão - nas mãos da Igreja - a escritura, o clero e o escriba tornam-se agentes fundamentais desses novos comportamentos interiores e mediadores entre o homem e Deus, portadores ou reveladores dos segredos de cada um numa ambigüidade pesada de contínuos questionamentos" (Ibid., p. 501).

Os homens estavam convencidos de que as mulheres detinham os segredos do amor - essa loucura e as chaves da vida - esse tesouro. Faziam poções mágicas para suscitar o desejo utilizando-se de sangue menstrual, esperma do homem, urina de ambos os sexos, cujo princípio era captar as forças vitais por tudo que adviesse do ser vivo. Uma das magias para provocar ou conservar o desejo do marido consistia em introduzir um peixe vivo na vagina e deixá-lo morrer ali. Carregado com a força geradora e afrodisíaca o peixe era temperado, cozido e oferecido ao esposo. Para a mulher o objetivo era a procriação mais do que o prazer, sendo a água sua cúmplice:

Pois bem sabemos que a vida nasce da água, que o peixe foi a primeira forma de vida e que o feto tem brânquias no começo do primeiro mês. Misteriosa conivência, surpreendente predição dessa mentalidade religiosa pagã! (Ibid., p. 505).

O grande segredo dos adivinhos, feiticeiros, mulheres era aprisionar o sagrado: "aproximar-se de sua perigosa radiação" frequentando os bosques sagrados, realizando danças rituais destinadas a provocar a fecundidade e a prosperidade e afastando os mortos.

A força divina era algo exterior. As mentalidades teriam que passar do sagrado ao sacramento. Foram então construídos santuários e basílicas para o culto dos santos; procissões e celebrações litúrgicas para tornar a fé pública.

Toda a magia foi considerada como demoníaca6. O imaginário cristão integrou o diabo em sua visão do além e integrou-o também à sua vida cotidiana.

Segredo e violação

Uma progressão do conforto privado tanto dos olhos quanto da boca foi facilitada pela melhoria no abastecimento de água7 que se encontrava ao alcance da mão. Os domésticos, servidores e as criadas traziam-na para os banhos e assistiam aos patrões nesses momentos mais íntimos. Nos séculos XIV e XV a nudez vista pelos criados era indiferente aos patrões, pois os segredos que importavam eram os das famílias burguesas e das fortunas.

O preparo dos banhos pelos criados era uma prática dos nobres e ilustres; era sinal de status e motivo de ostentação. Era como se a água fosse sinal de riqueza. Também em comemorações e recepções o banho para os convidados ilustrava a prodigalidade do anfitrião:

As contas de Filipe, o Bom, registrando não apenas as despesas, como também as ações do duque, permitem verificar os "banhos tomados em seu palácio". Eles sempre supõem um acréscimo de alimentos, e particularmente de carnes. São oportunidades para convites, banquetes, agitações muito especiais de coisas e de pessoas: "Em 30 de dezembro de 1462, o duque fez festa nos banhos de seu palácio, onde estavam o sr. De Rovestaing, o sr. Jacques de Bourbon, filho do conde de Russye, e muitos outros grandes senhores, cavaleiros e escudeiros". A prática, portanto, é prestigiosa. Em certo sentido, ela até enobrece o banho proporcionando um excedente de prazer e refinamento: "O duque recebeu festivamente ao jantar os embaixadores do rico duque da Baviera e do conde de Würtenberg e mandou fazer um suplemento de cinco pratos de carne, para festejar-se nos banhos". Uma tal ceia pode ser, enfim, agrado real (GACHARD apud VIGARELLO, 1996, 26 p.). A recepção oferecida em 10 de setembro de 1467 por J. Dauvet, primeiro presidente do Parlamento, à rainha Carlota da Savóia seguida de "várias outras damas de companhia" assemelha-se em todos os aspectos àquelas evocadas pelas contas do duque de Borgonha: "Elas foram recebidas e festejadas muito nobremente e com grande largueza, e foram feitos quatro belos banhos e ricamente preparados (TROYES apud VIGARELLO, 1996, 26 p.)

Não apenas em comemorações e recepções havia a prática do banho. Também no espaço do gineceu, célula íntima das mulheres, o mesmo era praticado de outra forma.

O gineceu, especificamente feminino, constituía-se de um espaço privado separando o mundo interior do espaço exterior para que as mulheres executassem canções de fiar8, canções de gesta, romances e mesmo serões de mulheres na literatura mais tardia.

A organização do gineceu considerava uma presidenta eleita em rotação e um auditório feminino que aumentava dia-a-dia. Esse agrupamento de mulheres era depositário de saberes secretos que eram difundidos apenas entre as mulheres. No "Roman de la Violette" há a violação desse espaço fechado:

a ama-de-leite encarna a quebra da solidariedade em relação à célula íntima das mulheres: ela espreita o desejo nascente do homem, intromete-se, arranca à moça o segredo do sinal íntimo - a violeta -, depois transpassa a barreira simbólica cuja fragilidade assinala uma fenda nos valores utópicos do gineceu, o harmonioso plural das mulheres (RÉGNIER-BOHLER, 1990: p. 346-7).

O momento da intimidade do banho propiciou, através da espionagem possibilitada pela ama, a violação do espaço do gineceu. O banho ofereceu ocasião de intrusão do olhar masculino.

Esse tema é frequente na iconografia ocidental das "toilettes" das deusas ou de simples mortais. Rembrandt, por quatro vezes, retoma o tema de Susana e os Velhos. Também Tintoretto e Leandro Bassano aliam em suas pinturas o ornamento feminino, a carne, a cabeleira preciosa, o espelho originário constituído pela água e o tema de Susana e os Velhos9. A força dessas imagens são retratadas por Rembrandt no quadro Betsabá e a Carta do Rei Davi10. O homem escondido atrás das cortinas ou da janela suscita a surpresa da mulher que se banha (Jean-Baptiste Pater).

O corpo não era apenas o signo de uma exaltação da pessoa como gozo em relação ao Eu e ao Outro, mas também a sede de um bom ou de um mau uso de si. Convenções ditavam seu estatuto e seus gestos. Os textos medievais apresentavam um código específico que fixava para o corpo feminino uma beleza canônica incluindo a brancura da face, os cabelos louros e a harmonia dos traços (Ibid.).

O corpo masculino era representado pela excelência muscular e a tez tinha grande importância para a aparência do corpo. Aos cuidados estéticos faziam intervir os cuidados médicos: conselhos referentes ao código de sociabilidade, anotações sobre a higiene e valorização do corpo.

As saunas e os banhos públicos passaram a ser objeto de regulamentação e vigilância tentando-se evitar a promiscuidade sexual alternando os horários para homens e mulheres. Esses espaços se propunham a serem terapêuticos e, um letreiro colocado em cada banho, esclarecia as suas virtudes. Eram frequentados por doentes, coxos e aleijados de todas as regiões. Em cada banho existia uma fonte de água fervendo e água fria para resfriar a quente. Cada banho era fechado e isolado e, quartos contíguos possibilitavam repousar após o tratamento. Essas saunas comuns despertavam ciúmes nos maridos, pois o banho deixava eclodir o erotismo. Cada vez mais eram instaladas as saunas privadas.

Vários são os romances que abordam o banho e sua importante função simbólica constituindo-se no espaço e no tempo da intimidade.

No "Roman de la Rose", apud Régnier-Bohler (1990) o erotismo aparece ligado à umidade feminina sugerida pelo vapor, nas palavras da personagem da Velha:

Estais ainda na infância e não sabeis o que fareis, mas eu bem sei que em um momento qualquer, cedo ou tarde, passareis pela chama que queima tudo, e vos banhareis na tina em que Vênus aquece as damas. Bem o sei, sentireis o fogo! Assim, aconselho-vos a preparar-vos, antes de irdes ali vos banhar, como me ouvireis ensiná-lo, pois toma um banho perigoso o jovem que não tem ninguém para instruí-lo (p. 364).

Nesse romance a frequência à estufa, faz com que rapazes e moças encontrem prazeres não só nos banhos em comum como também são mencionados quarto, camas, festins:

Lá vão rapazes e senhoritas
unidos por velhas proxenetas
percorrendo prados, jardins e bosques
mais alegres do que papagaios
depois voltam a entrar nas estufas
e banham-se juntos em tinas [...]
(LORRIS E MEUNG apud VIGARELLO, 1996: p. 32).

No romance "Flamenca" a esposa consegue encontrar-se com o amante na sauna apesar deste trancá-la no local. Para sair ela precisava tocar uma sirene. Flamenca diz-se doente e marca com o amante o encontro. Convida seu círculo feminino para banhar-se, mas escolhe as fontes vulcânicas cujo odor não é agradável. Dessa forma as outras mulheres desistem do banho e a esposa evidencia um erotismo temido pelos maridos. (RÉGNIER-BOHLER, 1990).

Os banhos e massagens eram utilizados nos rituais de acolhida ao visitante. Eram também terapia e erotismo. Em geral era o homem que constituía o objeto desses cuidados atentos e dessa proximidade corporal. Após a realização dos torneios os combatentes voltavam para casa e apreciavam a água quente que lhes era oferecida para banhar os pescoços feridos.

O tema decora o portal da Catedral de Auxerre representando uma estufa onde o filho pródigo é massageado e enxugado por mulheres e uma criada despeja água na tina. Para realçar a sedução sereias e serpentes cercam a cena (ENLART apud VIGARELLO, 1996).

Em muitos outros lugares são retratados corpos que se banham na mesma tina; convivas e serviçais circulando no momento do banho; mistura de sexos, de idades e de nudezes que remetem a outra forma de sociabilidade.

A prática dos banhos está ligada ao segredo e à violação, ao tempo lúdico e festivo, aos prazeres e ao jogo; a ilegalidade e à transgressão:

Quando, em 29 de agosto de 1466, Jehannotte Saignant, dona de estufas, é colocada sob uma grade, antes de ser embrulhada num saco e afogada nas águas do Ouche pelo carrasco de Dijon, seus crimes são os mais variados, mas nem sempre gravíssimos. Antes de tudo, turbulência em torno de seu estabelecimento: ela teria favorecido o arrombamento, por um de seus clientes, da casa do sr. De Molène, secretário do Duque de Borgonha. A agressão visava à mulher desse último e nunca foi totalmente esclarecida. Em seguida, prostituição ilícita: a estufa de Jehannotte era provida de "jovens camareiras de grande graça, muito complacentes e bem induzidas", a serviço da casa. Finalmente, envenenamento: a dona de estufas teria utilizado uma erva "especial" para preparar o vinho e a refeição de uma cliente à qual então "queria mal". O resultado foi "trágico" para a banhista: "Parecia que se tornara louca [...] A qual esteve doente desde então, por muito tempo, sempre até sua morte, e, finalmente, sem recuperar a saúde, ela morreu (GARNIER apud VIGARELLO, 1996: p. 35).

Os olhos estavam, então, voltados para o que acontecia nas estufas: ouvia-se gritos, berros, saltava-se tanto que o autor considera que era de se espantar que os vizinhos o tolerassem, a justiça o dissimulasse e a terra o suportasse. Enfim nesses locais de prazer a motivação dos banhistas, dos encontros, das comemorações e dos festins mantinha uma cumplicidade com a transgressão. Nessa medida fazia-se o recenseamento das violências ocorridas nas saunas bem como dos "desvios" ocorridos ali:

É como se algumas espontaneidades, algumas impulsividades, até então vagamente integradas ou até mesmo julgadas normais, fossem agora vividas como excessos. Mais do que em qualquer outro lugar, decerto aqui estão próximos os comportamentos "mal" dominados, os gestos abruptos, as atividades "demasiado" impulsivas, todas as "palavras contenciosas", enfim, que levam a "sacar o punhal", relatadas, no século XV, pelos processos surgidos em torno das estufas (VIGARELLO, 1996: p. 35/36).

As estufas pertenciam ao mundo do prazer e não estavam a serviço da ordem. A água era tida como um suplemento de prazer e aumentava o sentimento de desregramento. Esses estabelecimentos foram então comparados a bordéis, a tabernas e o moralismo da Igreja reforçava as normas sociais e urbanas que invocavam o seu desaparecimento. Os fatores que influenciaram a recriminação dessa prática dos banhos tinham uma dupla lógica: intolerância com um ambiente turbulento e violento e medo referente à fragilidade dos corpos gerando as pestes.

Nos palácios e casas dos nobres não havia violências e nem se estabeleciam relações com a delinquência urbana. O seu desaparecimento deveu-se mais ao imaginário da água - dos fluxos perigosos - e, às representações do corpo. Mas, tanto nos palácios quanto nos banhos públicos, seu contexto era o do divertimento. O banho era, de fato, um palco de diversão social; a água permite que se desfrutem melhor os sentidos. Ela é calor e comunicação mais ou menos sensual (Ibid.).

Na classe dominante não se iniciava uma refeição oferecida na sala da sociedade sem que fossem apresentados aos convivas os jarros com água para as abluções. A toalete conduzia ao banho onde reencontrava-se o corpo nu. Antes de lavá-lo também era preciso desembaraçá-lo dos piolhos e insetos. Era preciso fazer recuar o imundo preservando das epidemias.

A água corria abundantemente também pelos corpos dos cavaleiros errantes, que eram friccionados, esfregados à noite, pelas filhas dos hoteleiros. Esses cuidados eram vistos com desconfiança pelos moralistas, pois o banho conduzia à procedimentos indignos. O banho quente era prelúdio obrigatório dos jogos amorosos. Os homens e mulheres na Idade Média lavavam-se e massageavam-se mais comumente que seus descendentes.

A lavagem do corpo não provocava, no final da Idade Média, as prevenções do moralismo monástico; a prática do banho e da sauna era geral. Em todos os meios não havia reservas quanto à lavagem completa do corpo. Hospitalidade e sociabilidade favoreciam os rituais:

Quando o Senhor Barnabá Visconti, no relato de Petro Azario cumpre as promessas que fizera incógnito ao camponês que o ajudou a reencontrar seu caminho, ele o faz lavar-se na água tépida antes de oferecer-lhe o leito mais suntuoso que o infeliz jamais vira. Na rica morada burguesa do final da Idade Média, as pessoas se despem e se banham em seu privado. Na casa de Anton Tucher, de Nuremberg, por volta de 1500, o dono da casa passa de seu quarto para uma pequena peça onde se despe, e onde uma tina está instalada perto de um aquecedor de latão sobre um piso lajeado recoberto por um ripado de madeira. Deixam-se em infusão na água plantas odoríferas, segundo uma receita de Galeno, rega-se o banhista com pétalas de rosa: "Lançaram tantas sobre mim", diz o herói cortês de uma epopéia austríaca escrita no final do século XIII por Ulrich von Lichtenstein, "que já nem sequer se via a água do banho". No campo, se se julga a partir dos Fabliaux, a prática do banho não é menos difundida que na cidade; na casa ou fora, as pessoas se agacham em uma tina de água quente, debaixo de um pano estendido que conserva o vapor e acrescenta ao banho a sauna" (BRAUNSTEIN, 1990: p.592).

Às vésperas das bodas, o noivo e seus companheiros e, a noiva e suas companheiras tomavam banho juntos, num ritual anterior ao casamento.

Na cidade ou no campo as pessoas se dirigiam aos estabelecimentos públicos de banho, muitas vezes gerenciados pela comunidade. Seguiam quase nus, a correr pelas ruas. Além dos banhos havia também a cura termal que se torna um fenômeno mundano.

Os prazeres da água foram amplamente partilhados no final da Idade Média:

No Norte dos Alpes, a prática da sauna é muito antiga e corrente; o Tratado Italiano De Ornatu, sobre a toalete feminina, esclarece que o banho de vapor, ou stuphis, era uma receita germânica. Efetivamente, a sauna - da qual uma das mais antigas descrições foi transmitida pelo geógrafo e diplomata Ibrahim ben Yacub, visitando a Saxônia e a Boêmia em 973 - é uma instituição muito difundida no mundo eslavo e germânico; na maior parte das aldeias, a sauna, assinalada pela insígnia de um feixe de galhos folhosos, funcionava alguns dias por semana. (Ibid., p. 592/93).

O austríaco Siegfrid Helbling, poeta épico do final do século XIII, descreveu com grande luxo os detalhes de todas as fases do banho de vapor que tomavam juntos um cavaleiro e seu criado. O banho e a sauna eram lugares de relaxamento e limpeza do corpo, onde se podia discutir, recuperar-se, divertir-se:

A partir do momento em que o mestre de banho toca a trompa, as pessoas afluem, descalças e sem cinto, camisa de banho ou roupão no braço, deitam-se sobre os bancos de madeira, na obscuridade do vapor, em torno das pedras aquecidas regadas regularmente, deixam-se massagear as costas, os braços, as pernas por massagistas, ativa-se a sudação com golpes de feixes de ramos, esfrega-se o corpo com cinzas e sabão; depois vem o cabelereiro, que apara a barba e os cabelos; enfim, veste-se o roupão para repousar em um leito numa peça vizinha (Ibid., p. 593).

Poggio, autor da moda em 1416, dirige-se aos banhos de Baden, perto de Zurique. Baden significa banhos e é situada em um vale com altíssimas montanhas, perto de um grande rio de corrente rápida que deságua no Reno a 6 mil passos da cidade. Perto da cidade foi construído um estabelecimento sobre o rio para uso dos banhos. No centro do estabelecimento havia uma praça imensa e, à sua volta, edifícios onde cabiam multidões. Em cada edifício havia os seus banhos, alguns públicos, outros privados. Poggio descreveu o local:

Nesses tanques, uma espécie de paliçada foi construída entre pessoas pacíficas: ela separa os homens das mulheres. É realmente risível ver velhas decrépitas, ao mesmo tempo que jovens, entrar na água completamente nuas sob os olhos dos homens, mostrando aos homens suas partes naturais e suas nádegas; eu ri muitas vezes desse gênero de espetáculo pitoresco, evocando por contraste os jogos florais, e em mim mesmo eu admirava a inocência daquelas pessoas, que não prendem seus olhos a esses detalhes e não imaginam nem dizem nada de mal.

(...) Quanto aos banhos que estão nas casas privadas, são muito chiques e, eles também, comuns aos homens e às mulheres. Simples telas os separam, nas quais inúmeras pequenas janelas são recortadas, e graças a elas pode-se beber junto, conversar, ver-se de um lado ao outro e mesmo se tocar, como é o hábito. Acima dos tanques correm galerias onde os homens se instalam para observar e discutir. Pois é permitido a todos ir aos banhos dos outros, para contemplar, tagarelar, jogar, descansar o espírito, e permanecer ali de maneira que, quando saem da água ou quando nela entram, as mulheres são submetidas ao olhar quase inteiramente nuas.

(...) Nenhuma guarda observa as entradas, nenhuma porta as proíbe, nenhuma suspeita de licenciosidade. Na maior parte dos casos, é a mesma entrada que serve aos homens e às mulheres, e os homens encontram mulheres seminuas, e as mulheres, homens nus. Os homens usam no máximo uma espécie de ceroulas, as mulheres estão vestidas com túnicas de tela, aberta no alto ou do lado, que não cobrem nem o pescoço, nem o peito, nem os braços, nem os ombros. É na água que muitas vezes se faz uma refeição pagando com seu bilhete de entrada, sendo as mesas postas sobre a água, e os espectadores têm o hábito de assistir a essas refeições.

(...) De minha parte, era da galeria que eu devorava tudo com os olhos, os costumes, o uso, os prazeres da sociabilidade, a liberdade, até mesmo a licença dos modos de vida. É realmente espantoso ver com que inocência, com que verdade eles vivem. Maridos viam sua própria mulher tocada por estranhos e não se perturbavam, não prestavam atenção a isso, tomavam tudo pelo lado bom. Não há nada de tão delicado que não se torne fácil graças a seus hábitos de vida. Teriam facilmente se acomodado ao Político de Platão, tornando qualquer coisa comum a todos, já que, sem se basear em suas teorias, se classificariam de imediato entre seus seguidores. Em certos banhos, os homens se misturam diretamente às mulheres, quer sejam seus próximos pelo sangue ou por outras cumplicidades; a cada dia, entram no banho três ou quatro vezes, passando assim a maior parte do dia, cantando, bebendo ou dançando. Com efeito, cantam na água ao som da cítara, agachando-se um pouco; e é um espetáculo encantador ver moças, já maduras para o casamento, na plenitude de suas formas núbeis, o rosto brilhante de nobreza, manter-se e mover-se como deusas; enquanto cantam, suas roupas formam uma cauda flutuante à superfície das águas, de modo que as tomaríamos por Vênus aladas (Ibid., p. 594-96).

Poggio descreveu também os jogos de dardos e apresentação de danças realizadas num grande prado plantado de árvores ao longo do rio:

Esses lugares creio realmente que viram nascer o primeiro homem, esses lugares que os judeus chamam Éden; é bem isso, o jardim da volúpia. Pois se a volúpia pode tornar a vida feliz, não vejo o que falta aqui para atingir a perfeição de uma volúpia sob todos os aspectos consumada. (Ibid., p. 596).

Esse autor questionava-se se era possível que o corpo fosse a uma só vez oferecido e puro. Naqueles banhos misturavam-se as idades e os sexos: a velha não escondia as suas formas e os jovens que se olhavam quase nus não tinham os olhos acesos de desejo. Os corpos se tocavam e as mulheres não escondiam seu pescoço, seu colo, seus ombros, seus braços. Em seus questionamentos, Poggio, humanista, considerava que era ele que as despia com o olhar e tinha pensamentos e palavras impúdicas. A inconveniência estava em seu olhar, pois segundo ele, o espetáculo era de simplicidade e saúde mental. Ele era um voyeur diante dessa comunidade de corpos reconciliados, alegres e sem desejos; seu sentimento era de dor frente a uma plenitude da qual não participava: nada de guardas nas portas, nada de maridos ciumentos. Essa assembléia de corpos felizes anunciavam a Renascença, os atletas de Michelangelo atrás da Virgem musculosa e as festas despidas, de Primatício a Cranach.

Johannes Stumpf, Schhweizer Chronik,1586, mostra as diferentes maneiras de banhar-se: em uma grande cuba com várias pessoas; nos célebres banhos de Baden perto de Zurique, jovens e velhos, homens e mulheres, sãos e doentes entram juntos na piscina pública, sob os olhos de alguns espectadores; em um poço d'água em pleno campo; é cura termal dita natural ou selvagem.

Das Mittelalterliche Hausbuch - manuscrito do fim do século XV (Coleção dos príncipes Waldburg-Wolfegg), desenho a pena que reúne em torno de um banho voluptuoso, entre íntimos, todos os ingredientes do prazer: a música de diversão, o vinho posto para refrescar, o jardim fechado povoado de animais, onde se passeia conversando.

As fontes de juventude dos quadros flamengos do século XV foram inspirados, parcialmente, em homens e mulheres jovens, em corpos graciosos, nadando nus. O "Jardim das Delícias" de Hieronymus Bosch ilustra um paraíso perdido.

O Jardim das Delícias descreve o prazer dos sentidos quer seja ao representar o casal dentro de uma bolha ou o casal dentro da concha. Muitas figuras representam jogos de amor: o homem que mergulha primeiro com a cabeça na água e que tapa seu sexo com as mãos ou, o jovem que introduz flores no ânus do seu companheiro. Bosch retratou o prazer carnal e inúmeras figuras metafóricas ou simbólicas tais como os morangos que são insistentemente evidenciados. Os Espanhóis, ao invés de denominar o quadro de Jardim das Delícias, chamam-no de o Jardim dos Morangos.

O investigador flamengo Dirk Bax (apud BOSING, 1991) fez

um cuidadoso estudo do Jardim das Delícias e devido ao seu profundo conhecimento da literatura holandesa mais antiga, conseguiu identificar muitas das formas do painel central - frutos, animais ou as estruturas minerais exóticas - com símbolos eróticos influenciados por canções, provérbios e obscenidades do tempo de Bosch. Por exemplo, muitos dos frutos mordiscados pelos amantes no jardim são metáforas dos órgãos sexuais; os peixes que aparecem duas vezes no primeiro plano constituem o símbolo fálico de antigos provérbios holandeses. O grupo de rapazes e raparigas a apanhar frutos, à direita do plano do meio, exerce uma actividade menos inocente: "apanhar frutos" (ou flores) era um eufemismo para o acto sexual. Os mais interessantes são, talvez, os grandes frutos ocos e as cascas de frutos para dentro dos quais algumas das figuras mergulharam. Bax vê nisso um trocadilho da palavra chel ou schil que tanto significa a casca de um fruto como um raspanete ou discussão: por conseguinte, aquele que estava sentado num schel estava a discutir com o outro e isto também pode incluir a divertida luta do leito do amor (p. 53).

Parece significativo Bosch conceber a imagem dos prazeres carnais como a de um grande parque ou uma paisagem de jardim. Durante séculos, o jardim foi considerado o ambiente por excelência para os amantes e os prazeres amorosos. Nos jardins de amor havia sempre flores bonitas, pássaros a cantarem ternamente e, no meio, uma fonte onde os amantes se divertiam e se dedicavam à boa comida e à música. No Jardim das Delícias Bosch agregou elementos da iconografia tradicional dos jardins de amor, entre eles, a fonte e as casas de prazer dominando o lago que estao fundo.

Embora o Jardim das Delícias, se assemelhe aos jardins de amor, os seus habitantes são muito mais discretos. Raramente saltitam nus ou fazem jogos de amor na água sendo, no entanto, a associação entre amor e jogos amorosos com a água já frequente nos tempos de Bosch. Assim, por exemplo, nas representações dos meses em calendários, o mês de maio, o tempo do amor, é ilustrado por um par amoroso que se abraça em pé dentro de uma cuba. As próprias representações da Fonte da Juventude são consideradas sob o ponto de vista erótico. O quadro de Bosch não mostra nenhuma Fonte da Juventude, mas tais representações inspiraram, sem dúvida, a sua imagem dos prazeres do banho no Jardim das Delícias.

Na pintura de Bosch, no lago, homens e mulheres tomam banho em conjunto, mas no plano do meio, os mesmos estão cuidadosamente separados uns dos outros. No pequeno lago redondo só existem mulheres e os homens montam diversos tipos de animais à sua volta. Os jogos dos cavaleiros acrobáticos - um saltando sobre as costas de sua montada - sugerem que estão excitados pela presença das mulheres, uma das quais está saindo da água. Bosch serve-se deste meio para demonstrar a atração sexual entre homens e mulheres, e não é por acaso que o pequeno lago e a cavalgada circulante ocupam o centro do jardim, como fonte e início dos jogos de amor que têm lugar nas restantes áreas. Para os moralistas medievais, que nunca se mostraram muito cavalheirescos neste aspecto, era sempre a mulher que seduzia o homem para o pecado e para a concupiscência, seguindo o exemplo de Eva. Este poder maligno da mulher foi muitas vezes representado, mostrando uma mulher no centro de admiradores masculinos. Mas nos quadros de Bosch, os homens em vez de dançarem, montam a cavalo. Os animais costumam simbolizar as apetências baixas ou animalescas do homem e as representações físicas do pecado foram muitas vezes mostradas em cima dos variados tipos de animais. No fundo, tanto naquela altura, como agora, montar um animal servia ocasionalmente como metáfora para o ato sexual (Ibid., p. 52 a 56).

Aos poucos, as atitudes em relação aos corpos foram se transformando: o corpo nu feminino ficou reservado à clausura, à solidão, ao olhar de um círculo restrito, sendo fonte de embaraço, de vergonha, de fragilidade.

As atitudes em relação ao corpo relacionavam-se com a concepção dualista de que a pessoa era formada de um corpo e de uma alma, de carne e espírito. O corpo era o lugar das tentações; de um lado o que deve voltar a ser pó e, de outro, o imortal.

A esfera do íntimo

As sociedades europeias do século XVI ao XVIII sufocaram o indivíduo sob o peso dos comportamentos familiares, comunitários, cívicos e rurais. O quê pertencia à esfera do íntimo? Que lugares pertenciam a alguém único no tempo e no espaço? - o jardim fechado, o quarto, a ruelle - que se constituía do espaço entre a parede e o leito - o gabinete ou o oratório e as lembranças-objeto: o livro, a flor, a roupa, o anel, a fita, o retrato, a carta.

O jardim fechado era um local propício aos encontros amorosos, corteses ou religiosos. Tinha flores, fontes e tanques e seu ar não era o mesmo da rua ou do campo. Era impregnado de odores de rosa, água pura e santidade. Dessa forma era capaz de curar o corpo e a alma. A sociabilidade do jardim fechado era sempre íntima.

O quarto também era um espaço íntimo. Os pintores dedicavam-se a representar as atividades que só se realizavam no quarto. Watteau, Boucher e Greuze pintavam temas íntimos e eróticos já representados pelos pintores holandeses do século anterior tornando-os mais explícitos:

Watteau vai além das convenções em A Toalete Íntima. Uma jovem de camisola aberta está sentada na cama preparando-se para o banho. Uma criada segura uma bacia e passa-lhe uma esponja. O tema é banal, porém o quadro é tão explícito que o observador - mesmo no século XX - sente-se um intruso. Com efeito, toda a educação contemporânea nos leva a desviar o olhar desses atos privados. As dimensões do quadro são bastante reduzidas; para vê-lo bem é preciso aproximar-se, transformar-se imediatamente em voyeur. A mulher banhada nada faz de indecente, mas o espectador que contempla o quadro é levado à indecência. As estatuetas e quadros de belas mulheres nuas brincando com um cão que se esconde entre suas pernas obrigam a deixar de lado a civilidade: quem vê essas obras sempre resvala no impudor do privado (RANUM, 1991: p. 226).

O voyeurismo decorria, já no século XV, dos cuidados com o corpo feminino que tornaram-se lugar comum do erotismo. Esses cuidados passavam-se em público, no momento dos banhos públicos. Também as damas no banho nos próprios quartos foram pintadas rodeadas de criadas, de lareiras, de móveis. Os pintores da Escola de Fontainebleau representaram essas damas nuas parecendo felizes em seu auto-erotismo; representavam-nas também posando como Vênus ou Diana, tendo por cenário um bosque com um curso d'água para o banho ou em um montículo de terra. Os quadros das Raparigas Banhando-se, Bernardo Luini, 1518 e O Banho das Ninfas, Palma il Vecchio, 1525 têm essas características.

As fontes e lavadouros eram locais privilegiados de contatos e censuras que se transformavam em rumores. Lugar frequentado por mulheres. A vizinhança era o tribunal da reputação. Não só a vizinhança intervinha na intimidade da família burguesa, mas também os criados realizavam uma espionagem doméstica - viam e ouviam pelo buraco da fechadura - mas, eram negados como pessoa e tidos como assexuados:

A marquesa de Châtelet, no século XVIII, podia ser banhada com a maior indiferença por seu criado de quarto Longchamp, de cuja virilidade, porém, tinha consciência suficiente para fazê-lo sentir-se embaraçado, como confessa em suas Mémoires. Cento e cinquenta anos depois, a sala de banho, transformada em santuário, fecha-se sobre a nudez dos senhores que já não toleram ser vistos por seus criados (PERROT, 1991: p. 182).

A mão que servia não era considerada a de uma pessoa. O criado, diligente e atento, dentre muitas outras tarefas, mantinha o calor da água, controlava a caldeira, derramava água diretamente na tina com o devido cuidado para não queimar a marquesa. Longchamp confessa seu constrangimento, a mão trêmula ao despejar a água do banho (LONGCHAMP et MAGNIÈRE apud VIGARELLO, 1996).

O banho integrava-se ao cotidiano e transformava, também, além das práticas da água, a das decências privadas. No final do século só banhistas mulheres serviram as grandes damas. E, muito lentamente, o banho, por volta dos meados do século XVIII, começa a mudar de status como na pintura Mulher na Toalete, Benjamim-Eugène Fichel, 1891.

Nessa época, a imersão na água continha efeitos que dominavam a imaginação; correspondiam a uma sucessão de ações cuja influência sobre o corpo estava longe de ser apenas limpeza. A água quente tida como a mais penetrante, a morna moderava os aquentamentos e a fria suscitava contrações que reforçavam os músculos e os vigores (VIGARELLO, 1996).

O novo interesse pelo banho fez com que inúmeras monografias médicas, em meados do século XVIII, discorressem sobre o assunto. A Academia de Dijon, em 1755, propôs o seguinte tema: "As virtudes do banho aquoso simples". A teorização médica discutia a influência dos abalos produzidos no interior dos órgãos e os fenômenos de sensibilidade. Tratava-se, portanto, de descrever e reconstituir um estado de deleite que o banho quente provocava, atingindo os sentidos por sua própria substância que não é neutra, causando deleite, tornando o banho calmante, incitando o sono.

"Le Médecin des Dames" em 1772 prescreve os banhos como uma prática sazonal indicando a primavera e o verão como as estações mais favoráveis. Mas essa é uma prática de luxo e os primeiros a se entregarem a essa "moleza" aristocrática em meados do século XVIII não serão os mesmos que um ou dois decênios depois descobrem as virtudes do banho frio coadunados com o ascetismo: lascívia opondo-se a uma prática austera.

Os gabinetes de banho eram raros, existindo apenas nas residências dos nobres, consistindo então em locais de refinamento e estética. Um exemplo disso é uma descrição apresentada no conto publicado por Bastide em 1753, "La Petite Maison" em que o marquês de Frémicour impressiona uma mulher mostrando-lhe a casa que construiu às margens do Sena, em Paris. O aposento dos banhos tem especial destaque com seus mármores, porcelanas e musselinas.

O banho tinha um novo lugar. Esse conto, publicado no jornal Econômico, misturava os temas da técnica ao da sensibilidade, do luxo ao do progresso. Retomam-se as proposições de Voltaire: o refinamento das artes é condição para o refinamento dos sentidos. (Ibid.).

Casanova, ao descrever o apartamento que o embaixador da França lhe emprestou em Veneza, em 1754, para facilitar seus encontros amorosos, via na banheira um local especial em que se misturava erotismo e sensualidade relegando a segundo plano qualquer razão funcional (Ibid.).

Em 1759 um texto sobre a arte da beleza introduzia um longo elogio ao banho pleno de elementos do imaginário sobre o harém oriental:

Com o banho da odalisca, o prazer sempre prevalece um pouco sobre o útil, e o efeito sobre os sentidos prevalece sobre o asseio. O cenário do serralho, descrito pelo autor, designa a volúpia: o nácar, as pérolas, as plantas aromáticas, a própria banheira transformada em concha, criam mais do que um efeito de ambiente. Tais objetos designam antes de tudo o meio. Cada gesto não é totalmente aplicável à lavagem. Sustentado por um imaginário das delicadezas e das preciosidades, o banho não poderia ser simples prática funcional. Esplendor das culturas refinadas, ele trabalha a sensação. Uma vez banhada, a odalisca pode "entregar-se aos braços de um sonho suave e voluptuoso". Ela é ao mesmo tempo sereia e languidez (CAMUS apud VIGARELLO, 1996: p. 114).

As pessoas insurgiam-se cada vez mais contra as disciplinas das coletividades e as servidões familiares, expondo sua necessidade de um tempo e de um espaço para si mesmas. Correntes anarquistas individualistas fizeram-se presentes na virada do século contemplando a liberdade do corpo, gosto pela natureza, pelo esporte, pelo amor livre. Tais audácias, porém, esbarravam nos comportamentos convencionais. Por exemplo, nas classes abastadas, o código de boas maneiras proibia uma moça de se admirar nua, mesmo através dos reflexos de sua banheira. Havia pós especiais para turvar a água do banho, de forma a prevenir essa vergonha. Havia o temor de se despertar o desejo sexual suscitado pela água quente. O pudor estava diretamente relacionado ao desnudamento dos corpos e às apalpações que ele provoca. Havia a suspeita do olhar e dos gestos. Esfregar os órgãos genitais constituía um problema e a recomendação era para que se fechasse os olhos até terminar a higiene. As reservas eram evocadas utilizando-se uma linguagem que não nomeava o perigo11.

Alguns médicos exploravam o assunto considerando a banheira perigosa por sugerir "maus" pensamentos e o banho uma ofensa ao pudor constituindo-se um perigo para os costumes permanecer uma hora nua dentro de uma banheira (LÉONARD apud VIGARELLO, 1996).

O uso da banheira de metal, móvel, antecede a instalação dos sistemas modernos, fixos devido ao encanamento. Aos poucos, cria-se um novo espaço de intimidade onde, ao abrigo de qualquer intromissão que ameace seu pudor, a mulher pode pavonear-se, ler, sonhar. No quadro A Banheira, Alfred Stevens, o uso de uma leve camisola, a postura e o enfado sugeridos pela mulher evocam mais o arcaico álibi terapêutico do banho que a sensualidade. Única nota de erotismo: o pescoço do cisne de Leda esculpido na torneira.

Os riscos do excesso de abandono dos corpos imersos na água estavam presentes também nos internatos. Os banhos quentes, nos colégios, só eram permitidos para doentes que não eram deixadas sozinhas (COURTEILLE apud VIGARELLO, 1996).

As religiosas ofereciam camisas às pensionistas para que estas pudessem banhar-se. Com tantos perigos envolvendo a imersão na água, as famílias da elite, até finais do século XIX, resistiam à prática dos banhos:

Ninguém da minha família tomava banho! Nós nos lavávamos numa tina com 5 centímetros de água, ou nos esfregávamos com esponja em grandes bacias, mas a idéia de mergulhar na água até o pescoço parecia pagã, quase culposa. (PANGE apud VIGARELLO, 1996: p. 194).

O mesmo autor relata que, em 1900, a menina Pauline de Broglie teve febre alta e o médico prescreveu um banho. A casa era riquíssima, mas não tinha banheira, que foi alugada. Surgiu, então, uma nova questão: a menina deveria ficar nua nas águas do banho? Optou-se por banhá-la com a sua camisa de noite.

Mesmo no banho o corpo permanecia oculto e a mulher evitava olhar para o tornozelo nu. Outras prescrições antigas diziam respeito a lavagem da cabeça. Os pentes e pós secativos continuavam tendo a preferência.

A água chegou nas casas parisienses em 1865. O banheiro tinha vasos e bacias e sua função não era de uso cotidiano. A água adquiriu valor depois das descobertas de Pasteur: a lavagem das mãos tornou-se uma obrigação social.

Na primeira metade do século XIX havia, portanto, uma diversidade de banhos dos mais ricos: água morna facilitando as energizações orgânicas, água quente servindo para a distensão íntima e a água utilizada nas hidroterapias.

Habitações modernas também eram oferecidas à classe operária contendo ar, luz e água: tomadas de água em cada andar; lavanderia em uma construção especial, provida de secadoras; casas de banho e piscina coberta.

Em torno de 1900, difunde-se, então, o sanitário e o banheiro. A porta tinha um ferrolho e o corpo nu experimentava sua mobilidade longe de qualquer intromissão. A difusão da prática do banho, entretanto implicava também no convencimento das pessoas de que ela não ofendia o pudor, pois enxergava-se na água um vício incipiente em que se associavam a tepidez à lascívia.

(Des)prazer dos sentidos

Do final da Idade Média até meados do século XVIII a limpeza dispensava a água e ignorava o corpo, excetuando-se o rosto e as mãos, únicas partes expostas. A água era rejeitada como um agente perigoso, que penetrava por toda parte. A água era capaz de se infiltrar no corpo e, especialmente a água quente, fragilizava os órgãos, abrindo os poros para os ares malsãos. O corpo banhado tornava-se permeável aos ares infectos que ameaçavam entranhar-se nele por todos os lados. A luta contra a peste, no final da Idade Média e na época clássica fez com que as coletividades tivessem pavor do contato: era preciso restringir os intercâmbios. Dessa forma vários regulamentos internos foram elaborados e os "conselhos" referiam-se também à higiene individual e, necessariamente, aos banhos.

Os médicos, em tempos de peste, denunciavam as casas de banho onde conviviam os corpos nus e indicavam que as pessoas fugissem das estufas e dos banhos. Um número cada vez maior de cidades impunha o fechamento das casas de banhos e estufas12.

Imagens confusas da pele infiltrada pela pestilência, ares malsãos, males indefinidos fazem pensar também na possibilidade da gravidez na estufa decorrente de algum espermatozóide que permaneceria na tepidez da água (GRAFF apud VIGARELLO, 1996).

Todas essas imagens tiveram sucesso suficiente e superaram os discursos médicos sendo adotadas pelas mentalidades até se banalizarem. O banho foi cercado de regras imperativas sugerindo-se repouso, acamamento, proteção dos corpos com roupas. Com tanta recomendação, a prática do banho tornava-se complexa e rara.

O banho trazia "resultados" como bem ilustra o ocorrido com Sully, ministro do rei Henrique IV, numa certa manhã de maio de 1610:

O emissário do Louvre encontra Sully tomando banho em sua residência do Arsenal, tudo se complica: uma série de obstáculos impede este último, contra a sua vontade, de ir ter com o rei, que no entanto o solicita. Os que o cercam, e o próprio emissário, insistem para que ele não se exponha ao ar de fora: "Encontrando-vos no banho e vendo que queríeis sair para fazer o que o rei vos ordenava, ele vos disse (pois estávamos junto de vós): Senhor, não deveis sair do banho, pois temo que o rei tenha cuidado com vossa saúde e precise tanto dela que, se soubesse que era esse vosso estado, teria ele mesmo vindo até aqui". O enviado de Henrique IV propõe-se a retornar ao Louvre para informar o soberano e voltar trazendo suas ordens. Entre as testemunhas, ninguém se surpreende por ver tal situação perturbar as relações entre um rei e seu ministro. Ao contrário, todos insistem para que Sully não se exponha. A resposta de Henrique IV vem, aliás, confirmar as precauções adotadas: "Senhor, o rei vos ordena que termineis vosso banho e proíbe-vos de sair hoje, pois o sr. Du Laurens assegurou-lhe que isso prejudicaria vossa saúde." Houve, portanto, um conselho. Opiniões foram solicitadas e dadas. O recurso a Du Laurens, médico real, já especifica as preocupações. O episódio assume, sobretudo, a aparência de um "caso". Este mobiliza, logo de início, vários personagens. Também tem prolongamentos, uma vez que os "riscos" permanecem durante vários dias: "Ordena-vos que o espereis amanhã, com roupão, botinas, chinelos e touca de noite, a fim de não vos indispordes por causa de vosso último banho". (SULLY apud VIGARELLO, 1996: p. 12/13).

As práticas privadas dos banhos também vão lentamente sendo eliminadas nos séculos XVI e XVII. As banheiras transformaram-se em tanques dos jardins e integraram-se a outro circuito da água - a água era apenas para olhar, para seduzir a visão; um espetáculo das naturezas disciplinadas privilegiando-se as teatralizações dos jogos aquáticos (TEYSSÈDRE apud VIGARELLO, 1996).

A toalete então, na maioria das vezes, era "seca", consistindo no friccionar-se e perfumar-se. Várias disposições constavam das "Civilidades" do século XVII para que se esfregasse e não se lavasse. As crianças deveriam limpar as faces e os olhos utilizando tecido branco. A lavagem com água prejudicaria a vista além de provocar dores de dentes, catarros e empalidecer o rosto.

Os higienistas do século XVII, dentre eles Jean du Chesne, descreviam e prescreviam a maneira de se fazer a toalete. A rejeição à água não eliminava a prática da limpeza. O seu uso restringia-se apenas à lavagem das mãos e da boca13.

Nos tratados de civilidade os temas se aprofundam com o tempo. No manual de Jean-Baptiste de La Salle, datado de 1736, as normas são mais rigorosas do que as de Erasmo, datadas de 1530 indicando como desengordurar os cabelos com pó e farelo sem utilizar a ablução.

Dentre essas atitudes em relação aos corpos, a água quente e depois a fria eram indícios de novas distinções sociais:

Porém ao mesmo tempo insere-se numa nova imagem do corpo que ultrapassa o savoir-vivre: a higiene reabilita a intimidade corporal e legitima a procura de uma melhor utilização dos recursos orgânicos. Enfocada pela medicina e depois levada às escolas, logo se tornará, aliás, o dispositivo inédito de uma nova forma de controle coletivo dos comportamentos (REVEL, 1991: p.191).

A história do asseio não é isolada e implica uma nova sensibilidade que, em meados do século XVIII permitiu novas ideias sobre a água e a higiene. Reconhece-se no mundo dos gestos reprovados a silenciosa evolução de outra forma de intimidade.

Enfim, o texto de La Salle que, inicialmente foi destinado aos alunos das Escolas Cristãs, foi alvo de imensa difusão nos séculos XVIII e XIX e levou ao extremo o controle corporal exigido tanto pela moral cristã quanto pela polidez. O modelo cortesão se opunha à civilidade erasmiana e a seu sonho de transparência social. A arte social - a civilidade - fez o século XVII esquecer a existência de um corpo próprio para impor uma auto-representação que satisfizesse as normas do grupo.

Ao mesmo tempo em que se impunha por toda a parte a aparência, a crença no gesto justo e a fé na existência de uma semiologia geral dos comportamentos, unívoca e válida para todos, como fundamento do trato social, foram questionadas e denunciadas por serem construídas. Problematiza-se a civilidade: mentira, engano, vaidade ou simplesmente ridículo? A verdadeira civilidade traduziria as disposições caridosas da alma cristã e, a falsa, seria repleta de afetação e calculismo e objetivaria enganar as pessoas.

Rousseau, no século seguinte, apela ao coração e à razão contra a tirania dos costumes requerendo no Émile as virtudes reencontradas de uma natureza moral e boa. Ele será educado à margem da sociedade a fim de estar mais bem preparado para a mesma. Com Rousseau foi estabelecido um novo modo de enfocar a infância e a educação: no seio das relações naturais e privadas.

Nos anos da Revolução Francesa, civilidades republicanas tentaram o impossível casamento da educação proposta por Rousseau com as fórmulas de Erasmo, revistas e corrigidas.

O conflito entre o que relaxa e o que comprime; entre o que amolece e o que endurece fez com que o banho frio, no século XVIII, fosse alvo de estudos dos terapeutas para utilização em tratamentos atribuindo-se a ele vantagens consideráveis: o frio no corpo comprime as partes exteriores e as vibrações das fibras tornam-se mais tensas, o sangue e os espíritos circulam com maior velocidade. A água fria serve também para atenuar o sangue, torná-lo mais fluido, despertar os espíritos animais e fazê-los circular mais rapidamente; facilitam a digestão, abrem o apetite e tornam o corpo mais ágil e vigoroso (JACQUIN apud VIGARELLO, 1996).

Além do funcionamento orgânico, da mecânica das fibras no contato com a água fria, outra pretensão existia: o ascetismo na prática do banho frio. O endurecimento seria tanto moral quanto físico:

Enquanto os romanos, ao sair do Campo de Marte, iam lançar-se no Tibre, foram os donos do mundo. Porém os banhos quentes de Agripa e de Nero pouco a pouco fizeram deles escravos [...]. Os padres conscritos, portanto, bem tiveram razão em se opor às termas, mas a tropa dourada, infetada pelo luxo asiático, triunfou sobre a resistência e a virtude dos padres conscritos.

[...] Roma não se perdeu através de uma juventude que desdenhava se banhar na água fria, abandonada à moleza, tornando-se quase semelhante a nossos janotas, por ter deixado de lado os exercícios físicos que constituíam sua força e sua virtude? (TRONCHIN apud VIGARELLO, 1996: p. 132/133).

Muitos exemplos de práticas em água fria foram evidenciados por esse médico enciclopedista e seus amigos, citando os habitantes do istmo da América, os índios da América, os de La Hontan e os de Le Beau. Todos esses exemplos idealizavam o vigor e visavam promover a Antiguidade como modelo de lutas, jogos, exercícios, corridas, movimento. Seu sentido era social e opunha-se ao banho quente, tomado nos palacetes pela burguesia e que amolecia.

A austeridade do frio era considerada superior aos prazeres julgados fáceis demais. As práticas quentes inclinavam às fraquezas e as práticas frias ao vigor. A isso juntava-se a crítica também ao que era natural e ao que era artificial: aos corpetes, às roupas sufocantes, aos besuntados nos cabelos, dentre outros.

Um primeiro estabelecimento para frequência pública foi construído sobre o Sena em 1761. Era um projeto terapêutico e higiênico destinado aos ricos. O estabelecimento foi o precursor dos banhos do século XIX.

Certas práticas transformaram-se como, por exemplo, o banho de rio que era reservado aos jogos ou a tratamentos isolados e indicado como saudável, como exercício reforçador, como técnica revigorante.

A transformação no banho das crianças também foi reveladora. Em prática anterior ao século XVIII, nos momentos que se seguiam ao nascimento, a criança era lavada com um líquido quente e protetor e, em seguida, vedava-se os poros com uma substância viscosa. O corpo era passivo e submisso à mão que o manipulava. Com o banho frio considerava-se que o corpo era dotado de um poder prévio, não mais matéria inerte. Mergulhar a criança na água fria era confiar que o fortalecimento vem do interior: as contrações fortificam mais do que as manipulações externas. Rousseau fez poucas referências ao banho frio na infância, mas a sua tônica da transparência encontrava-se no contexto do artificial e do natural.

Também a maneira de se arrumar as crianças considerou a oposição entre vigor e moleza, simplicidade e afetação, naturalidade e artificialismo.

Água: cúmplice no aprendizado erótico do corpo

Reconhecerá na água,
na substância da água, um tipo de intimidade,
intimidade bem diferente das que as
"profundezas" do fogo ou da pedra sugerem.
Bachelard, 1998

Muitas crenças fizeram com que as pessoas encarassem com prudência os efeitos da água sobre o físico e o moral. As normas regularam a prática do banho conforme o sexo, a idade, o temperamento e a profissão. A preocupação consistia em evitar o olhar para si, o tocar em si (CORBIN, 1991).

Homens e mulheres do século XIX valorizavam certo modo de escuta do corpo - cenestesia - escutavam a mensagem de suas vísceras incitados pelos fisiologistas; davam um grande valor aos efeitos da água, do sol, da altitude e da temperatura sobre o corpo humano. A relação estabelecida entre a água e a esterilidade dificultava o avanço da higiene íntima da mulher.

O ritmo menstrual regulava o calendário do banho. As toalhinhas higiênicas e o bidê só aparecerão entre a burguesia de Nevers, por exemplo, no final do século XIX.

O efeito esperado da limpeza popular era o da ordem e da saúde. Havia que se transmitir a norma e lutar contra o mefitismo dos operários, soldados, estudantes, todo o público que os banhos populares de 1850 objetivavam sem o conseguir. Visava-se lavar o maior número possível de corpos limitando-se o tempo e o consumo de água. Isso evitaria grandes investimentos e limitaria o banho ao asseio. Inventou-se o esguicho de água utilizado, principalmente, no exército e na prisão considerando-se o banho de banheira muito longo e caro para os operários o que consistia em perda de tempo e de dinheiro (ARNOULD apud VIGARELLO, 1996).

Os militares, então, foram os primeiros a se utilizarem das duchas da hidroterapia e, com isso, economizavam água. O sistema era ideal, pois permitia filas, disciplina, movimentos coletivos e regrados. Uma pessoa segurava o esguicho e comandava os banhos14.

O sistema foi se modificando e, em pouco tempo, a cada fileira de homens correspondia uma fileira de aparelhos. O dispositivo tornou, com algumas modificações, o dos chuveiros populares: cabines estreitas, esguichos contíguos, água e tempo contados.

Mas a água impõe manipulações próprias; ela resiste e capta o imaginário. O banheiro autorizou os cuidados do indivíduo consigo mesmo.

Outro fato histórico renovou a conduta privada: o uso da camisola que antes era tolerado fora do quarto, tornou-se símbolo de uma intimidade erótica. A lingerie obteve extrema sofisticação e o corpo feminino jamais foi tão escondido como entre 1830 e 1914. Deu-se, então, um neurótico encontro: o desejo de conservação, o cuidado de proteger-se, o medo da castração, a permanente lembrança da ameaça do desejo.

Binet e Krafft-Ebing, no final do século, descreveram e codificaram a ascensão do fetichismo cujos sintomas já tinham sido analisados por Zola, Huysmans e Maupassant:

A mística do talhe e das curvas, a fixação do desejo nos sedosos arredondados do colo, o valor erótico do pé e do couro das botinas, o desejo de cortar a cabeleira feminina para respirar à vontade tornaram-se fatos históricos, assim como o fetichismo do avental, símbolo de intimidade que parece autorizar todos os atrevimentos. A lingerie, onde vão inscrever-se os traços da sexualidade, da enfermidade, até do crime, adota um discurso comprometedor; nele se apóia o rumor elaborado pelos criados e logo amplificado pelas lavadeiras. A lavadeira do castelo sabe de muita coisa; desfruta na aldeia do prestígio da mulher que conhece os segredos das belas roupas íntimas (CORBIN, 1991: p. 447).

O século XIX, através do pudor e da vergonha, ocultou, então, um duplo sentimento: por um lado o medo de ver o corpo - exprimir-se, de permitir que o animal se manifestasse, o que gerava a preocupação de evitar qualquer manifestação corporal. Por outro lado, o medo de que o segredo íntimo fosse violado pela indiscrição.

Essas preocupações inspiraram a pedagogia das congregações femininas que objetivavam reduzir a vivacidade das crianças, estancar as fontes de emoção e restringir as manifestações da sensualidade. Se os sentidos são como portas abertas para o demônio, fazia-se necessário ensinar a prudência, ocupar constantemente as mãos das crianças, ensinar-lhes a recear o próprio olhar, a falar em voz baixa, a compenetrar-se das virtudes do silêncio. Todos esses comportamentos redundavam na exaltação à virgindade e à castidade.

As mãos das crianças eram, também, motivo de preocupação por causa da possibilidade de contaminação e os pequeninos eram alvo de histórias em que os micróbios se transformavam em lobos e leões. VIGARELLO (1996) afirma que é a ciência colaborando com o bestiário da infância. Outros autores elaboravam suas prescrições:

Você sabe por onde suas mãos perambularam o dia todo? Quem sabe o que você tocou e através de que focos de epidemia elas andaram chapinhando? E você as leva à boca, toca seus alimentos inconscientemente e com descuido, mas ficaria apavorado se lhe mostrassem o que fervilha sobre elas" (DAVID apud VIGARELLO, 1996: p. 227).

Também à púbere eram destinados vários manuais de fisiologia e higiene que enchiam a vida da moça de proibições. Os médicos prescreviam que se evitasse estimular a curiosidade das moças pelos assuntos relacionados ao sexo. A vida urbana impedia o contato com a copulação entre animais e facilitava, então, as teorias errôneas sobre o nascimento dos bebês. Na realidade, porém, muitas vezes os comportamentos eram bem diferentes dos prescritos.

O fascínio da transgressão, as delícias da desculpa e da falta geraram práticas sexuais solitárias. O discurso médico e o clero juntavam-se no combate a tais práticas. Em 1760, com reedições até 1905, Onania do Dr. Tissot é um exemplo da produção médica sobre o assunto.

O discurso médico alertava para o fato de que o prazer solitário masculino conduzia a uma rápida decadência: definhamento, senilidade precoce e emagrecimentos prejudicando a capacidade de trabalho. Ocultava, no entanto, a recusa do aprendizado do prazer (CORBIN, 1991).

Em relação às mulheres o gozo sem a presença masculina era particularmente intolerável. O clitóris tinha grande hostilidade dos médicos do século XIX que consideravam-no simples instrumento de prazer, inútil na procriação.

A vigilância provinha dos médicos, dos padres e dos pais - vigilância nos dormitórios, em casa e nos colégios. As crianças não podiam ficar sozinhas por muito tempo e as moças deveriam permanecer sempre à vista de numerosas colegas. A prática da equitação e a máquina de costura despertavam desconfiança (Ibid.).

Em 1878 os especialistas prescrevem sanitários tendo orifícios na parte superior e inferior para facilitar o controle. Até 1914 os médicos prescrevem, também, bandagens sob medida para evitar o onanismo rebelde. As moças chegaram a usar cintos de contenção. Nos hospícios usavam-se contra os rotulados ninfômanos, algemas, correias, aparelhos instalados entre as coxas para impedir o toque. A cauterização da uretra era praticada frequentemente. Um rapaz de dezoito anos, citado por Théodore Zeldin, sofreu essa cauterização por sete vezes:

Semelhante terapêutica, destinada, a princípio, a curá-lo de perdas seminais involuntárias. Porém são ainda mais eloqüentes os pavores de Amiel, minuciosamente retratados pela própria vítima. O infeliz "sucumbe" regularmente às "perdas seminais". "Cada polução é uma punhalada para vossos olhos", declarou um especialista ao rapaz de dezenove anos. Este, aterrorizado, anota cuidadosamente desde então cada uma de suas ejaculações noturnas; consigna seus arrependimentos, escreve suas resoluções; à noite, toma banhos de água fria, come gelo picado, lava as virilhas com vinagre. Nada adianta; em 12 de junho de 1841 ele decide não dormir mais que quatro ou cinco horas por noite, sentado em uma poltrona (Ibid., p. 455).

A cauterização do clitóris e do orifício da vulva eram raros.

A vigilância gerava a transgressão; formavam-se grupos para rir e falar de sexo. O nu, que era profundamente ocultado, era um fantasma a espreitar os homens. No romance Nana os convidados da condessa Sabine falavam da forma de suas coxas. Zola sugere, em alguns romances do final do século, o roseamento da pele, quando longamente banhada ou o vapor de um banheiro superaquecido:

Detém-se nos perfumes abafados das banheiras, nas gotas orvalhando os membros. Surpreende gestos, prolonga contatos, registra cores e ruídos, transmitindo até os movimentos e os marulhos abafados da água. Suas banhistas burguesas conservam a pele sempre um pouco úmida sob a camisa ou o penhoar: é Nana, sumariamente vestida, recebendo Filipe ao sair de seu banho, ou ainda Nana "visitando e lavando" seu corpo, antes de o examinar interminavelmente diante de um espelho (ZOLA apud VIGARELLO, 1996: p. 241).

A emoção literária contribuiu para a difusão dessa prática do banho entre os privilegiados. Dentre outros textos que trazem esses cuidados secretos encontra-se La Venus de Rachilde (1884): a água escorrendo ou secando sobre a pele; um corpo ainda úmido, recém-saído da água.

Com todas essas contradições, o imaginário da época redundava em um sentimento de vulnerabilidade que acompanhava os progressos da individualização; o fracasso da relação, que, no seio das classes dominantes, convidava a um temeroso recuo para os prazeres solitários e a interiorização dos imperativos de uma moral sexual cada vez mais exigente, gerando o sentimento de culpa. Tudo isso fez do século XIX a idade de ouro da confissão e da penitência.

Em 1822 o conde de Brancas fundou o primeiro estabelecimento de banhos de mar conseguindo levar até o local a duquesa Berry. A partir de então a corte se desloca para beira-mar. As águas minerais também entram na moda desde o começo do século.

Depois de 1830-1840 os médicos exploraram as afirmações dos higienistas do século XVIII considerando a água do mar como "prova", meio de choque e de solidificação. A água deveria ser enfrentada fazendo com que os corpos recebessem o impacto das ondas. Vários banhistas são treinados para segurar os corpos dos "curistas" e jogá-los nas ondas, repetindo a operação. Esses banhos não tinham então relação com a limpeza e nem com a natação e sim com a hidroterapia e as discussões sobre os efeitos da água fria no organismo.

Segundo um artigo de 1915, publicado na Revista da Semana, no. 46, intitulado "Banhos de Mar":

ele é um "excellente recurso therapeutico" a ser recomendado aos anêmicos, aos "escrofulosos" e aos convalescentes em geral. Mas "os tuberculosos, os cardíacos, os gottosos e as histéricas devem, ao contrário, evitá-lo. Desse modo, "os banhos de mar só devem ser usados sob prescrição médica. (OLINTO apud SANT'ANNA, 1995)

O banho de mar constituiu-se numa possibilidade para desnudar os corpos. Na primeira metade do século elaborou-se uma nova experiência com o espaço: proximidade com a praia, longas caminhadas, solitários devaneios em meio aos bosques.

No decorrer da segunda metade do século instaurou-se a noção de férias. A praia distendia os gestos, aliviava as roupas, tornava as brincadeiras e as posturas mais espontâneas. Calor e beleza violenta transtornaram a carne e a alma, permitindo a irrupção do prazer. Ainda que aliviasse as roupas, estas eram generosas, fabricadas com tecido de flanela ou baeta grossa de cor escura, sem forros.

ELIAS (1994) discute as diferenças nos trajes de banho no decorrer do processo civilizador. O autor considera que, só numa sociedade com um padrão elevado de controle dos impulsos como a atual é que os trajes de banho têm esse grau de liberdade:

As emoções de fato têm, em forma "refinada", racionalizada, seu lugar legítimo e precisamente definido na vida cotidiana da chamada sociedade civilizada. E isto é muito característico do tipo de transformação através do qual se civilizam as emoções (...) essa transformação do que, inicialmente, se exprimia em uma manifestação ativa e freqüentemente agressiva, no prazer passivo e mais controlado de assistir (isto é, em mero prazer do olho), já é iniciada na educação e nas regras de condicionamento dos jovens (...) o olho assume importância muito específica na sociedade civilizada (p. 200).

Um novo jogo amoroso surgiu no seio das famílias burguesas no final do século: o flerte. As estações de águas e os balneários eram os locais privilegiados para tal e conciliavam a virgindade, o pudor e os imperativos do desejo; constituíam-se numa conversação muda do apetite sexual.

A prática do banho liberou, pouco a pouco, as proibições que pesavam sobre a contemplação, a exibição e o aprendizado erótico do corpo.

A mulher casada começou, então, a reivindicar o direito ao prazer degradando o modelo da esposa virtuosa. A permanência em estâncias hidrominerais e os banhos de mar favoreciam as aventuras.

A contracepção desenvolveu-se passo a passo com a higiene íntima. Dr. Forel indicava injeções de água morna acidulada com vinagre, esponjas embebidas em um desinfetante e colocadas no fundo da vagina, cânula inglesa - que consistia em um tubo de plástico, borracha ou metal para introduzir no corpo, aberto em ambas extremidades -, e o bidê.

No final do século XIX as cinco décadas que se estenderam do Segundo Império até a Primeira Guerra Mundial remodelaram a fisionomia do casal e prepararam a explosão da nova ética sexual, apesar de uma moral vitoriana, intransigente e monolítica. Delinearam-se as sensibilidades modernas com a contribuição de autores do teatro de revista; políticos da esquerda radical; burguesas feministas; propagandistas neomalthusianos; militantes que teorizavam a união livre e estudiosos que edificaram a sexologia.

O nascimento deixava de ser, paulatinamente, um critério social claro e decisivo e cada um deveria definir e expressar sua posição. O indivíduo, formado desde a infância na intimidade com os testes, crescia no temor do fracasso e com um sentimento de insuficiência que geravam a paralisia da vontade. O dever de ser feliz modificava a relação entre desejo e sofrimento.

A ciência médica, além de regulamentar exercícios corporais, a prática da equitação, também regulamentava a frequência aos bailes, a leitura de romances e as relações conjugais regulando os discursos da paixão, os devaneios da alma e o uso dos sentidos. Os médicos recomendavam as "curas de ar" encorajando o termalismo e o turismo marítimo.

A medicina da alma também é estimulada e a hidroterapia é um dos tratamentos da alienação. À época, o corpo - sua imagem e seu uso - vivia tanto a modelagem dos comportamentos quanto um movimento de liberação. O banho de mar, então, consistia numa manifestação do novo cuidado com o corpo e gerava um prazer que era desfrutado em meio à alegria juvenil e à promiscuidade entre os sexos. Os jovens misturavam-se, mesclavam-se, confundiam-se rumo ao desabrochar do corpo liberado que, paulatinamente vai deixando a esfera médica.

Marcel Proust fala das ciclistas na praia e Paul Valéry analisa os prazeres do corpo nu em meio à fluidez de um banho de mar.

Um novo sistema de relações se esboçava antes da guerra. Uma outra modernidade se esboçava no alvorecer do século XX devido a expansão do mercado e ao aumento da produção que impulsionaram o consumo. A publicidade excitava o desejo incitando a mobilidade através de trens, automóveis e bicicletas; de cartões-postais e telefonemas. A moda diversificava a aparência e a foto possibilitava multiplicar a imagem de si (PERROT, 1991).

A nova estética trazia um corpo mais bem tratado, uma sexualidade liberada da reprodução, até mesmo do casamento e do credo heterossexual que atingia em maior ou menor grau a todas as camadas da sociedade. Essas transformações eram mais ensaiadas do que efetivadas e contavam com a resistência religiosa, moral e política. A Guerra bloqueou, proibiu, desviou, suscitou essas transformações.

A tradição cristã continuava envolvendo o corpo em suspeitas e censuras. O corpo, prisão da alma, não passava de um trapo que impedia as pessoas de atingirem a plenitude de seu ser. O corpo merecia respeito, mas dedicar-lhe excesso de atenção era expô-lo ao pecado da carne.

Dessa forma a higiene era restrita existindo a ideia generalizada de que a água amolecia o corpo; apenas mãos e rostos eram lavados e, ainda, a água era coisa rara e difícil de ser buscada. THUILLIER (apud PROST, 1992: p. 96) atribuiu à escola primária a difusão da higiene e do asseio:

Em Dijon, vésperas da guerra de 1914, quatro liceus masculinos dispõem de chuveiros, os quais inexistem num quinto liceu de rapazes, nos dois liceus femininos, em quinze colégios masculinos e mais treze colégios femininos. Os internos faziam lavapés semanais. A instalação de chuveiros constituía na época uma medida administrativa progressista da Prefeitura. Mas os tabus não se viam fortemente abalados. Ainda nas vésperas da guerra de 1940, uma mulher do povo respondia indignada: "Tenho cinqüenta anos, minha senhora, e nunca me lavei nessa parte!", a uma diretora de escola de Chartres que lhe chamara a atenção para o fato de que sua filha tinha ficado menstruada.

Nas residências da burguesia e pequena burguesia havia banheiros com banheira, bacias grandes, pias e bidês. Dessa forma os burgueses se lavavam com maior frequência. Os bebês de peito eram lavados diariamente. Os hábitos higiênicos eram diferenciados conforme a classe social.

O crescimento imobiliário após a Segunda Guerra Mundial possibilitou aos operários o contato com o uso do banheiro. A princípio eles guardavam carvão ou criavam coelhos nas banheiras. Os novos hábitos de higiene foram aos poucos incorporados.

O trabalho emigrou da esfera privada e ingressou na esfera pública. O ideal para a jovem mulher burguesa era ficar na casa dos pais sem trabalhar e, nas camadas mais baixas a jovem trabalhava fora: na fábrica, na oficina, como doméstica.

A polivalência do espaço da empresa não resultava apenas de sua progressiva constituição ao sabor das circunstâncias. Ela fazia parte de uma concepção global que definia o homem - ou a mulher - antes de tudo pelo seu trabalho. Dessa forma, a totalidade da organização da existência era em função do trabalho.

O trabalho das mulheres implicava em paternalismo e os trabalhadores viam na empresa uma espécie de grande família cujo pai seria o patrão. As greves foram um importante instrumento para a ruptura de uma relação pessoal, da contestação da autoridade do "pai da fábrica". Aos ganhos materiais acrescia-se a superioridade moral. Dessa forma o trabalho assalariado saiu do privado, pois não era um trabalho na casa de outrem, mas um serviço impessoal regido por normas formais, submetido a arbitragens coletivas, que se dava num espaço despersonalizado, onde não só o patrão mas também instâncias representativas possuíam direitos próprios. Assim a separação estabelecida e intensificada entre o trabalho e a família provocaram profundas modificações no quadro familiar.

Além das modificações no quadro familiar e no interior da vida privada da família, também dentro da família os indivíduos conquistaram o direito a uma vida privada autônoma.

A rua era um prolongamento da casa e as crianças brincavam nela como se estivessem no próprio lar.

O abastecimento de água, em 1939, era precário. Em 1949 em Rouen, França, mais da metade dos imóveis não tinha água encanada. As fontes públicas nas ruas ainda eram muito frequentadas para pegar água e enxaguar a roupa. Isso dava-se também na beira de rio.

Depois de 1954 há um salto para a modernidade quanto ao abastecimento de água e implementação do uso dos banheiros.

Anteriormente não havia como o indivíduo da classe operária se isolar. O espaço privado era o espaço público do grupo doméstico:

A toalete se fazia necessariamente sob as vistas dos próximos, que desviariam o olhar quando a ocasião pudesse chocar o pudor. Entre os mineiros, por exemplo, antes que as empresas instalassem chuveiros, o mineiro, ao voltar para casa, encontrava na sala uma tina de madeira e água no fogão, que a esposa tinha posto para esquentar. Ele se lavava ali mesmo, com a ajuda de sua mulher. No campo era a mesma coisa: as pessoas se lavavam na sala, ou fora de casa; aliás, lavavam-se raríssimas vezes, e nunca tomavam banho completo. (PROST, 1992: p. 72).

A ausência de privacidade acontecia também na hora de dormir. Dormiam pais e filhos no mesmo aposento e, muitas vezes, os filhos dormiam na cama dos pais. A noção de intimidade não era a mesma da classe burguesa. O exercício da sexualidade também. A menstruação das moças era marcada no calendário de serviço da casa; as relações sexuais, muitas vezes, aconteciam no escurinho fora dos bailes, atrás das moitas e nos próprios leitos, com a presença ou não dos filhos.

Os pais tinham plenos poderes sobre os filhos tanto na burguesia, quanto nas classes populares. O controle dos pais era exercido sobre o tempo livre, as correspondências, as relações dos filhos, seus estudos e profissões. O casamento também era, na burguesia, assunto de família, principalmente porque envolvia patrimônios. Isso não ocorria nas camadas populares. Em ambas, entretanto, o casamento possibilitava a emancipação dos filhos.

Na segunda metade do século XX, a educação dos filhos foi socializada com a instituição escolar. A família foi transferindo, aos poucos, para a escola, o aprendizado da vida em sociedade. Isso não apenas em relação à adolescência, mas ao "Jardim de Infância". Se antes a norma era conservar as crianças o maior número de anos possível no seio da família e até alfabetizá-las em casa, agora o jardim de Infância tornava-se uma alternativa para as mães que trabalhavam fora. A escolarização no Jardim de Infância se generalizou mesmo quando as mães não trabalhavam fora. Proliferaram também as colônias de férias, a princípio com preocupações higiênicas.

Os costumes se modificaram também em relação ao casamento. O amor passou a ocupar um lugar central no casamento. Portanto, não bastava a instituição matrimonial para legitimar a sexualidade: era preciso o amor. O feminismo encontrou nova repercussão amplificado pelos acontecimentos de 1968.

Os jovens já não precisavam casar-se para escapar ao poder dos pais e nem precisavam casar-se para manter relações sexuais; era um estilo de vida que recusava as convenções. Multiplicavam-se as coabitações juvenis que surgem como uma tentativa de síntese entre o laço conjugal tradicional e os amores extraconjugais, evitando-se a gravidez. São suas especificidades: uma relação mais duradoura, mas, nem por isso, definitiva; semi-consagrada socialmente; protege os cônjuges provisórios da solidão e do tédio; o entendimento sexual, facultativo no casamento, torna-se obrigatório; os antigos papéis do marido e da mulher são rejeitados em nome do princípio da igualdade. (BÉJIN apud VINCENT, 1992).

O símbolo do casal igualitário, no qual alter é ego e vice-versa, é o hermafrodita:

É a história - bastante rara - de um homem violentado por uma mulher. Filho de Hermes e de Afrodite, Hermafrodita era tão belo que despertou um desejo incontrolável na Ninfa Salmacis. Mas ele a repeliu. Aproveitando-se de uma ocasião em que o adolescente de quinze anos se banhava nas águas do lago, ela o abraçou e conseguiu que os deuses juntassem para sempre seu corpo ao do seu amado. Chateaubriand, que não era destituído de narcisismo, descrevia a si mesmo como um "andrógino bizarro, modelado com os sangues distintos de minha mãe e meu pai (VINCENT, 1992: p. 285).

Em apenas meio século o indivíduo passava à frente da família sendo que, anteriormente, a família passava à frente do indivíduo.

O modelo de modernidade que se difundia entre a burguesia parisiense, preferencialmente mundana, e que frequentava as praias e estações de águas fazia que os comerciantes, mais do que os higienistas, difundissem novos hábitos do corpo. Revistas como Marie Claire e outras revistas femininas, além de explicar às leitoras como se lavar, se maquiar, cuidar da casa, seduzir o marido, educar os filhos, foram responsáveis por transpor para o cotidiano as práticas próprias das férias. A ginástica também passou a fazer parte dos preceitos das revistas femininas. Imaginou-se, desenvolveu-se e democratizou-se esportes novos: esforço, jogo e prazer do corpo. O Méditerranée difundiu o culto dos 3S: "Sea, Sun and Sex". Mas não foi só isso. O Clube soube usar a recusa do indivíduo de ser classificado, definido por sua posição, o que constituiu-se numa vontade de ser tratado como pessoa privada dentro da própria vida coletiva. O Clube neutralizou as imposições formais do público.

A reabilitação do corpo modificou a relação dos indivíduos consigo mesmos e com os outros. O corpo era reivindicado e exposto à visão de todos. O prazer do banho, da toalete, do esforço físico torna-se, então, uma satisfação narcísica e autocontemplativa percorridas por sonhos e lembranças. Cuidar do corpo é prepará-lo para ser mostrado. No entreguerras o avanço do nu era o avanço da indecência e da provocação. Na nova norma uma coisa natural. Havia (há) a possibilidade dos pais e das mães irem e voltarem nus do banheiro para o quarto sem se esconderem dos filhos.

O corpo tornou-se lugar da identidade pessoal, portanto sentir vergonha do próprio corpo seria sentir vergonha de si mesmo.

A banheira conquistou um valor novo, desde o final dos anos 40, com a constante aparição das banheiras repletas de espuma, das belas mulheres sob as duchas, cuidando do próprio corpo. As propagandas de xampus e sabonetes convidam a penetrar na intimidade do banho alheio.

O privado desabrocha-se entre o coletivo:

A antiga organização da vida pública atribuía a cada indivíduo uma posição e uma série de funções que, por sua vez, comandavam os papéis a serem desempenhados. Os comportamentos das pessoas se tornavam previsíveis, mas os contatos e as relações se restringiam, e a espontaneidade ficava reprimida. A atual evolução dos costumes tende a apagar as diferenças de posição, mostrando que a vida coletiva põe em contato pessoas iguais em sua singularidade, ou seja, totalmente diferentes umas das outras, que devem ser aceitas em suas particularidades. Essa recusa de ser classificado, definido por sua posição, constitui fundamentalmente uma vontade de ser tratado como pessoa privada dentro da própria vida coletiva. Ela leva à diluição dos papéis sociais (PROST, 1992: p. 136).

Dentre todos os papéis sociais, o papel tradicionalmente atribuído às mulheres é o que sofre ataques mais intensos. Através dos meios de comunicação e da propaganda a vida pública penetrou, infiltrou e modelou os lugares mais secretos e íntimos da vida privada. Os jovens adquiriram radinhos de pilha para escutar no quarto, no banheiro, na praia, na rua. A publicidade contribuiu para desfazer antigas regras da vida privada e incitar o desempenho dos papéis sugeridos pela opinião pública.

Às margens do século XX, convivendo com todas essas alterações das mentalidades, o corpo torna-se objeto de amor e reflete-se no espelho. O espelho apareceu na França no século XVI, importado de Veneza, Itália. Era caro e raro no entreguerras. Nas casas operárias tinha um pequeno para se fazer a barba. O espelho de corpo inteiro era encontrado apenas nas classes abastadas. Aos poucos a pessoa deixou de perceber sua identidade física no olhar do outro e passou a contemplá-la no espelho grande do banheiro - local secreto - onde podia ver-se despida de sua aparência social - das cintas, espartilhos, perucas, dentadura...

Tanta limpeza fez com que a Igreja desconfiasse. A descoberta do próprio corpo poderia estimular toques suspeitos ou despertar o desejo de conhecer o corpo do outro. Nos anos 30 a regra era o banho semanal. As crianças mudavam a roupa de baixo também uma vez por semana.

As regras de higiene se transformam, assim como os cuidados com o corpo: ginásticas, alimentação, etc. Por exemplo, o chuveirinho é raro nos Estados Unidos por permitir apenas lavagens localizadas. Ele é contrário aos imperativos de higiene e, ao mesmo tempo às normas éticas. O chuveiro americano é uma tromba d'água que assegura o asseio e a purificação.

No bojo dessas transformações há o questionamento do que era tido como as coisas mais "normais" do mundo: maneiras de comer, de procriar, de tratar os outros, de respeitar pai e mãe, de criar os filhos e, as relações entre homens e mulheres.

A velhice, também culturalmente construída, reivindica o prazer que não conhece limites de idade. A criança é reconhecida como um ser sexual desde o seu nascimento.

Enfim, grandes acontecimentos na vida dos ocidentais nessas últimas décadas, fazem eclodir um erotismo totalmente estranho ao sistema cultural judaico-cristão: a caçada ao orgasmo masculino e feminino, a anticoncepção, o sexo virtual, a sexualidade na velhice e na infância.

Notas

1 Este texto integra a tese de doutorado: RIBEIRO ANDRADE, Cláudia Maria. O imaginário das águas, Eros e a criança. Campinas (SP): UNICAMP, 2001.

2 Cf. BROWN, Peter. Antiguidade Tardia. In: História da Vida Privada. Vol. I: Do Império Romano ao Ano Mil. São Paulo: Cia. Das Letras, 1990, p. 292: uma estátua de Vênus nua ergue-se diante dos banhos públicos de Alexandria; diz-se que faz o vestido das adúlteras levantar-se acima da cabeça; finalmente será retirada não por um bispo, mas pelo governador muçulmano, no fim do século VII. Ainda em 630, em Palermo, trezentas prostitutas provocam um motim contra o governador bizantino quando ele entra nos banhos públicos; conhecemos esse incidente porque o governador, um bom bizantino que esperava do clero que cumprisse seu dever para com a cidade, satisfizera seu pedido nomeando o bispo para o cargo de inspetor imperial dos bordéis, o que lhe valeu uma reprimenda do papa ocidental, chocado.

3 Cf. SENNET, Richard. Carne e Pedra. O Corpo e a Cidade na Civilização Ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 122. Após pagar taxa irrisória e tirar a roupa, em uma sala comum chamada apodyterium, o banhista dirigia-se ao caldarium, uma grande piscina de água quente, onde esfregava a pele suada com escovas de osso; depois, passava à piscina de água morna, tepidarium; o último mergulho era no frigidarium, de água fria. Descansava-se como num moderno parque aquático, conversando, flertando ou apenas se expondo.

4 Cf. ROUCHE, Michel. Alta Idade Média Ocidental. In: História da Vida Privada. Vol. I: Do Império Romano ao Ano Mil. São Paulo: Cia. Das Letras, 1990, 468-9: instaurava-se uma dupla relação de familiaridade e amizade com os animais domésticos que ajudam a caçar, de hostilidade e agressividade em relação ao mundo selvagem, inculto ou não cultivado. Esse mundo misterioso e vazio de homens desde o século VII era chamado for-etis, termo do que deriva o francês forêt [floresta], que no sentido primitivo designa natureza selvagem exterior à dominação humana. Na mente dos francos essa natureza só pode ser domada pela violência no momento em que se encontra mais descoberta, no outono, quando a vegetação enfraquece e os jovens já não precisam da mãe. Então se estabelece essa rivalidade entre o homem e o animal que permite saber se a lei do mais forte é a da natureza ou a da cultura, a do instinto ou a inteligência. A finalidade da caça não consiste apenas em abastecer as cozinhas, mas também em treinar para a guerra, para a arte de matar.

5 JUNG, C.G. Aion. Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 1982. O símbolo do peixe constitui uma representação espontânea da figura do Cristo do Evangelho e também um sintoma que mostra de que modo e com que significado ele foi assumido pelo inconsciente. Sob esse aspecto, a alegoria patrística da captura do Leviatã (a cruz entendida como anzol e o Cristo preso a ela como isca) é sumamente característica: Capturou-se um conteúdo (peixe), do fundo do inconsciente (mar), que ficou preso à figura de Cristo. Daí provém, provavelmente, a expressão característica de Agostinho: "de profundo levatus" (tirado das profundezas), que se aplica ao peixe. E também a Cristo? A figura do peixe surge das profundezas do inconsciente, ao encontro de Cristo, e quando Cristo era invocado como Ichthys [peixe], tal designação dizia respeito àquilo que fora arrancado das profundezas do inconsciente. O símbolo peixe representa, portanto, uma ponte entre a figura histórica de Cristo e a natureza psíquica do homem na qual repousa o arquétipo do Redentor. Por esta via, Cristo se converteu na experiência interna, no "Cristo em nós (p. 172, 173).

6 Cf. ROUCHE, 1990: p. 507: os Concílios de Agde (506) e Orléans (501) condenaram os adivinhos e as pitonisas, "possuídas pelo demônio". Apresentados como ilusões, seres reais incorpóreos, simbolizados pelo leão ou pelas serpentes, os demônios tinham a vantagem de personalizar as forças obscuras oriundas do cosmo que os antigos pagãos temiam. O adversário tinha um nome, e isso já mudava a relação de forças. Capaz de todas as metamorfoses, o demônio consegue, como diz Gregório de Tours, "macular a cadeira do bispo, na qual se senta por zombaria, vestido de mulher". Ele também se liga aos fracos: "As mulheres, criaturas medrosas, devem sempre temê-lo". Ele se infiltra nos maus sentimentos, na astúcia, no ciúme, e torna-se também inimigo interior. O medo do diabo passa a designar a angústia ante as forças malvadas do mundo, porém a proximidade dos santos e o poder de sua proteção ali estavam para aniquilá-lo. A ameaçadora imensidão de uma natureza indomada deixava lugar a uma relação dual, a um combate, e não mais a um contrato legal cheio de astúcias.

7 Cf. RONCIÈRE, Charles de la. A Vida Privada dos Notáveis Toscanos no Limiar da Renascença. In: História da Vida Privada. Vol.II Da Europa Feudal à Renascença. São Paulo: Cia. Das Letras, 1990, p. 203, 204. O poço público cavado nas encruzilhadas e nas praças, e mantido à custa dos vizinhos, é de uso comum em Bolonha, em Piacenza, em Florença e em muitas cidades no século XIII. Mas a água que daí se tira nem sempre é suficiente, nem sempre boa, e a água do rio, quando existe um, não é melhor. Preocupadas em mudar as coisas, comunas tomaram a questão nas mãos, criando, como em Veneza, um conjunto de cinqüenta cisternas públicas suplementares ou organizando, como em Siena, uma ambiciosa rede de canalizações subterrâneas e de fontes públicas. Em outras partes, são antes os habitantes que vemos agir. Em Florença, por exemplo, nos novos loteamentos traçados em 1320-1380 ao norte de San Lorenzo, poços privados são frequentemente construídos com os edifícios (...) quanto mais as ruas são belas e as construções caras, mais os poços são numerosos.

8 Cf. RÉGNIER-BOHLER, Danielle. Exploração de uma Literatura.In: História da Vida Privada.Vol. II: Da Europa Feudal à Renascença. São Paulo: Cia. Das Letras, 1990, p. 344: nas canções de fiar a noção de fronteira se delimita por uma situação de dependência da mulher e uma revolta virtual diante da instituição de um casamento temido e consumado: o tempo é o da espera, e o acento está colocado em uma temporalidade desesperadamente interna.

9 Susana no Banho, Surpreendida por Dois Velhos. Rembrandt, 1647 (Berlim, Gemäldegalerie, Staatliche Museen zu Berlin - PreuBischer Kulturbesitz). Um texto apócrifo de Daniel relata a história de Joaquim e de sua esposa Susana. Na época do cativeiro do povo de Israel, Joaquim possuía em Babilônia uma rica residência cercada por um jardim onde os judeus tinham o costume de se encontrar. Dois anciãos, escolhidos para juízes, exerciam aí as suas funções. Inflamando-se de paixão pela bela Susana, atacaram-na no dia em que ela se banhava no jardim. "As portas do jardim estão fechadas, ninguém nos vê, e nós ardemos de paixão por vós: rendei-vos ao nosso desejo, e fazei o que desejamos. Se não o desejais, testemunharemos contra vós e diremos que havia aqui um homem jovem convosco, sendo essa a causa da expulsão das criadas." Susana soltou um suspiro profundo e respondeu-lhes: "Só vejo perigo e angústia por todos os lados. Porque se fizer o que desejais, serei morta, e se não fizer nada, não escaparei das vossas mãos. Mas para mim é melhor cair nas vossas mãos sem ter cometido mal que pecar na presença do Senhor". Assim, por recusar os seus avanços, Susana foi acusada injustamente e condenada à morte. Mas um rapaz novo interveio e pediu que os velhos fossem ouvidos separadamente. Dessa maneira foram desmascarados e Susana salvou-se. A criança não era outra senão Daniel (Bockemühl, 1993).

10 Betsabá e a Carta do rei David Rembrandt, 1654 (Paris, Musée du Louvre). Betsabá foi uma das mulheres mais poderosas do velho testamento e viveu uma história de amor com David, o herói judeu que matou o gigante Golias. "David foi o rei mais popular e mais bem-sucedido que Israel jamais teve, rei e governante arquetípicos, de sorte que, por mais de 2000 anos depois de sua morte, os judeus viram o seu reino como uma idade de ouro." Calcula-se que David reinou por volta de 1000 a.C. (Paul Johnson, historiador inglês). O Velho Testamento conta que David, depois de tirar uma sesta, avistou de seu palácio uma mulher tomando banho. Era Betsabá. Betsabá segura pensativamente a carta, na qual o rei David lhe pede que vá ter consigo, colocando-a assim na perspectiva de cometer adultério.

11 Cf. FOIX apud VIGARELLO, Georges. O Limpo e o Sujo: uma história da higiene corporal. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 193. "Essas abluções aplicadas todos os dias em certas partes do corpo são feitas apenas uma vez, de manhã, ao se levantar, algumas no entanto, sobretudo na mulher, repetem-se várias vezes por dia. Não as indicaremos. Queremos respeitar o mistério da limpeza. Nós nos contentaremos em fazer observar que tudo o que ultrapassa os limites de uma higiene sadia e necessária conduz, sem se perceber, a resultados danosos.

12 Cf. VIGARELLO. Op. Cit., 1996, p. 9: Essas decisões serão, de início, hesitantes. Des Pars, por ocasião da peste de 1450, reclama em vão dos escabinos de Paris a interdição das estufas, obtendo apenas a cólera dos donos desses estabelecimentos (...) O fechamento temporário e repetido, a cada epidemia, impor-se-á, no entanto, na lógica dos isolamentos. No século XVI esse fechamento torna-se oficial e sistemático.

13 Cf CHESNE, apud VIGARELLO. Op. Cit., 1996, p. 19. Depois de ter soltado seu assim chamado ventre, deve como primeiro exercício pentear-se e friccionar a cabeça, e sempre da frente para trás, até o pescoço, com panos e esponjas adequadas, e isso demoradamente e até que sua cabeça esteja bem limpa de qualquer sujeira; durante essa fricção da cabeça, ele poderá até mesmo caminhar, para que as pernas e os braços aos poucos se exercitem.

14 Cf. DUNAL apud VIGARELLO, 1996, p. 243. Os homens se despem no primeiro recinto e, munidos de um pedaço de sabão, vão se colocar, três de cada vez, sob o cano do esguicho; três minutos bastam para se limparem da cabeça aos pés. Assim que a primeira série se retira, ela dá lugar a três outros, previamente preparados, e assim por diante.

Referências

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As Obras