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Água
indefinida


 As Obras

Inúmeros são os ritos agrários para chamar a chuva e que fecundam a terra, mas também aos animais e as mulheres. "A chuva é universalmente considerada como o símbolo das influências celestes recebidas pela terra" (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1982, p. 192)

Mergulhos

Chuvas... nuvens... bolas de sabão - dentre tantas outras - a água reveste-se de formas indefinidas. Relacionar, portanto, essa indefinição com gênero e sexualidades não é difícil, pois as masculinidades e as feminilidades e as infinitas formas de se ter prazer navegam pela negação de rótulos, de fixidez, de normatização, de normalização, de serialização, de classificação embora, contraditoriamente, os muitos discursos insistem em mantê-los. Contradições que revestem-se de resistências nas relações de poder. Assim, as chuvas, as nuvens, as bolas de sabão, dentre outras formas que a água pode se apresentar, mergulham nas simbologias. A proposta é encharcar-se primeiramente com a simbologia das chuvas, a seguir das nuvens e, finalmente, das bolas de sabão.

Inúmeros são os ritos agrários para chamar a chuva e que fecundam a terra, mas também aos animais e as mulheres. "A chuva é universalmente considerada como o símbolo das influências celestes recebidas pela terra" (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1982, p. 192). A lenda grega de Dánae traz a chuva vinda do céu que fertiliza a terra:

Encerrada pelo pai num quarto subterrâneo de bronze para não arriscar que ela tivesse um filho, ela recebe a visita de Zeus sob a forma de uma chuva de ouro que penetrou por uma fenda do tecto, e da qual ela se deixa impregnar. O simbolismo sexual da chuva considerada como esperma e simbolismo agrário da vegetação, que tem necessidade de chuva para se desenvolver, reúnem-se aqui estreitamente. O mito lembra igualmente os pares luz-trevas, céu-inferno, ouro-bronze, que evocam a união dos contrários, origem da manifestação e da fecundidade (Id., p. 192).

Há uma vasta iconografia em que borbulha o momento que Dánae é fecundada por Zeus - pai dos deuses e dos homens. Encerrada num quarto subterrâneo, não houve o impedimento da fecundação desejado pelo pai Acrísio, rei de Argos. Este havia consultado um oráculo que lhe predisse que seria morto por um neto. Embora presa, Dánae gerou Perseu e ambos foram lançados ao mar a mando do pai, em uma pequena embarcação - uma arca de madeira - para que se afogassem. Foram salvos por Posídon, rei dos mares.

Depois de vários anos, sendo Perseu forte e combativo, ao participar de uma disputa esportiva, arremessou um disco que atingiu Acrísio, que estava na plateia. Ele morreu e a profecia se cumpriu.

Vários são os temas a discutir instigados por este mito. Um deles é a da virgem que engravida, para nós afirmada apenas na passagem bíblica de Lucas 1, 26-38. Na mitologia grega há muitas mães virgens, deusas ou mortais como Dánae.

Também em algumas obras, Dánae não recebe diretamente a chuva de ouro:

a substituição de Cupido por uma serva envelhecida e avarenta (obra de Ticiano) permite ao pintor estabelecer uma clara contraposição: a jovem nua e expectante de pele nacarada contrasta com a velha vestida e participativa (PANCORBO et al., 2011, p. 259).

Assim, muitas são as possibilidades de problematização: Cupido - símbolo da paixão e do amor; o contraste das mulheres: jovem e idosa; nua e vestida; passividade e atividade; avareza; violência sexual. Quanto a discutir considerando gênero e sexualidade!

Judith W. Mann (in CONTINI e SOLINAS, 2012, p. 48) é estudiosa da obra de Artemísia Gentileschi - mulher pintora do século XVII que sofreu violência sexual quando adolescente - e retrata Dánae em aspectos diferenciados. Segundo a autora, desde 1540 era comum representar a chuva de ouro por um dilúvio de moedas simbolizando violência. Outra violência expressa na obra é o punho de Dánae que está cerrado e consiste numa metáfora da penetração sexual indesejada. Ela serra também as coxas, numa posição claramente embaraçada enquanto as moedas (ou as gotas da chuva de ouro?) se acumulam em seu púbis evocando uma união amorosa. A pintura de Artemísia é uma das raras imagens que retratam Dánae no momento do ato sexual que, ao invés de assumir as características de uma mulher sedutora, assume a expressão casta e inocente, inconsciente de seu destino.

Nuvens

As nuvens deslizam entre os estados líquido e gasoso; são indeterminadas, imprecisas, indefinidas, confusas, nebulosas; podem também ser o anúncio de tempestades:

Tempestade: agitação violenta da atmosfera, às vezes acompanhada de chuvas, ventos, granizo ou trovões; procela temporal. Grande estrondo. (figurativamente) agitação moral. Grande perturbação; agitação; desordem. Tempestade em copo d´água. Espalhafato, grande agitação por motivo frívolo. (DICIONÁRIO, 1988 apud RIBEIRO, 2012b, p. 37).

Com essa multiplicidade de características, as nuvens podem ser lúdicas, estranhas, assustadoras. Suas formas irregulares, instáveis e muitas vezes turvas, reafirmam o simbolismo de coisa oculta. Abrangem tudo e não abrangem nada: são bruma, orvalho, vapor (RIBEIRO, 2012a). Pergunto: quais as tempestades anunciadas quando o tema é gênero e sexualidade? E quais as sensualidades, o erotismo, o lúdico que tentam ultrapassar os discursos normalizantes? Diferentes "fantasias, valores, linguagens, rituais, comportamentos, representações" (LOURO, 2006, p. 7).

Nuvens e chuvas estão estreitamente imbricadas; são duas as principais simbologias da nuvem:

Em cuanto epifania o manifestación de la divindade, por uma parte; em cuanto símbolo de lo inconcreto, huidizo y vagaroso, por la outra. Em la primera de estas acepciones, el origen es tipicamente agrário: la nube, como manifestación divina es um símbolo patente em Éx., 13, 21-22: com la particularidade de que em este caso se trata precisamente de uma "coluna de nube". (REVILLA, 2012, p. 539).

Essa manifestação do sagrado e também a da inconcretude está muito presente na iconografia. Na poesia barroca a nuvem é símbolo de movimento, de mudanças, de fragilidade (Id., 539). Na tradição chinesa, "a nuvem indica a transformação de que o sábio deve ser objeto para se aniquilar, de acordo com o ensinamento esotérico do disco de jade" (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1982, p. 479). Estes autores reportam-se a Baudelaire e sua coleção de 51 pequenos poemas em prosa, para continuar essa simbologia, em Le Spleen de Paris. O personagem Estrangeiro diz: Amo as nuvens... as nuvens que passam... ao longe... ao longe... as maravilhosas nuvens! (Id., p. 480). Na mitologia grega Néfele é "essa Nuvem mágica, com formas semelhantes às de Hera, que Zeus usou para desviar os desejos libidinosos de Íxion. Da união desta Nuvem com Íxion nasceram os Centauros" (Id., p. 480).

Também o nevoeiro é símbolo do indeterminado. "Quando as formas ainda não se distinguem, ou quando as formas antigas que desaparecem ainda não foram substituídas por formas novas precisas" (Id., p. 470). Pergunto então: quais os nevoeiros que adentramos, cotidianamente, nas relações de gênero e sexualidades? O que estamos impedidos/as de ver? De distinguir? Ou ainda valores, crenças e costumes antigos que ainda não desapareceram? Poder-se-ia elencar inúmeras temáticas e desejar que o nevoeiro que estamos imersos/as seja o prenúncio de revelações importantes; o prelúdio de manifestações mais libertárias, menos preconceituosas, homofóbicas, sexistas, racistas. Em Êxodo, 19, 9 há a seguinte passagem: "Vou aproximar-Me de ti numa nuvem espessa, diz Javé a Moisés, a fim de que o povo... tenha sempre confiança em ti" (Id., p. 470).

Bolas de sabão

Muitos foram os artistas que pintaram as bolas de sabão: Murillo, Chardin, Hamilton, Manet, Millais. Elas são temas também de outras linguagens como os contos, as poesias, dentre outras, tais como: A estrutura da bola de sabão de Lygia Fagundes Telles e A bola de sabão de Alberto Caieiro. No conto os/as personagens estouram a bolha de desejos, amores, ódios, sensibilidades, candura, crueldade e sutilezas. A autora fala das feminilidades e das masculinidades. Na poesia o autor fala das efemeridades:

As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a natureza.
Amigas dos olhos como as cousas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser
(Fernando Pessoa - Obra Poética)

A bola de sabão simboliza, portanto, "a criação leve, efémera e gratuita, que estoira repentinamente sem deixar rastro" (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1982, p. 125). Ela suscita sensibilidade, beleza, magia, fragilidade, fascínio. É híbrida, pois é líquida e gasosa.

É provocação para que na Educação para as Sexualidades e Gênero borbulhe leveza e profundidade; ética e estética!

Referências

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores números. Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra. Lisboa: Editorial Teorema Lda, 1982.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: das afinidades políticas às tensões teórico-metodológicas, 2006. Disponível em: http://www.ded.ufla.br/gt23/trabalhos.html. Acesso em 24/01/2014.

MANN, Judith W. Artemisia Gentileschi - Danaé. In: CONTINI, Roberto e SOLINAS, Francesco. Artemísia - 1593 - 1654. Paris: Gallimard, 2012.

PANCORBO, Alberto et al. O Guia do Prado. Museo Nacional Del Prado. Tradução: Ormobook Servicios Editoriales. Edição Portuguesa: Eulalia Zamarrón Portús. 2ª edição, revista, janeiro de 2011.

REVILLA, Federico. Diccionario de Iconografía y Simbología. 8ª. Edição Ampliada. Madrid: Ediciones Cátedra, 2012.

RIBEIRO, Cláudia Maria. Pedagogizando prazeres de crianças pequenas ou educando para as sexualidades nas nuvens. In: XAVIER FILHA, Constantina (Org.). Sexualidades gênero e diferenças na educação das infâncias. Campo Grande, MS:Ed. UFMS, 2012a.

_______________. Educação para a sexualidade nas nuvens: quando há o anuncio das tempestades. In: XAVIER FILHA, Constantina (Org.). Sexualidades gênero e diferenças na educação das infâncias. Campo Grande, MS:Ed. UFMS, 2012b.

TELLES, Lygia Fagundes. A Estrutura da Bola de Sabão. Posfácio de Alfredo Bosi. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.



Dánae - Ticiano - inspirada em Ovídio (Metamorfose)



Dánae - Jan Gossaert Marbuse - 1527



A fecundação de Dánae - Klimt



Dánae e seu filho Perseu - 1892 - Waterhouse



Dânae, de Antonio Allegri Corregio, 1489-1534



Dânae de Domenico Tintoretto, 1518-1594



Dânae de Gaspar Bezerra, 1520-1570



Dânae de Hendrik Goltzius, 1558-1617



Dânae de Artemisia Gentileschi, 1593-1653



Dânae de Orazio Gentileschi, 1563-1639



Dânae de Cornelius Van Poelaemburgh, 1594-1667



Dânae de Rembrant, 1606-1669



Dânae de Antonio Bellucci, 1654-1726



Dânae de Giambatistti Tiépolo, 1696-1770



Dânae de François Boucher, 1703-1860



Dânae, Alexandre Jacques Chantron, 1842-1918



John William Waterhouse, 1849-1917



Dânae de Léon François, 1850-1916



Dânae de Franz Von Stuck, 1863-1928



Dânae de Matisse, 1869-1916



Egon Schiele, 1890-1818