Mergulhos
Nos mitos transbordam os quatro elementos. Exemplifico com o mito Eros e Psiqué, de origem grega, apresentado no romance Metamorfose do escritor latino Apuleio. Eros significa "o desejo dos sentidos". Psiqué significa tanto "sopro" quanto "princípio vital". As provas pelas quais tem que passar representam um rito iniciático envolvendo os quatro elementos: as formigas, que pertencem à terra; o caniço, que pertence à água; a águia de Zeus, que pertence ao ar e a ígnea e celestial figura do próprio Eros redentor, o próprio fogo, sendo este o principal elemento do mito Eros e Psiqué.
O tema do mito é o conflito entre Afrodite e Psiqué. A deusa, "que surgiu das profundezas azuis do mar e nasceu do borrifo das ondas espumantes" vivia entre os povos da terra. Entretanto, por causa de uma princesa mortal, a belíssima Psiqué, seus templos foram abandonados e de todas as partes surgiam forasteiros, não mais para reverenciar a mãe do Amor, mas Psiqué.
Afrodite pediu a seu filho Eros para vingá-la, destruindo a jovem princesa mortal fazendo-a casar-se com o mais repulsivo dos homens. Psiqué, porém levada pelo vento Zéfiro para um palácio, vive um amor maravilhoso com Eros, que permanece invisível. As duas irmãs de Psiqué infelizes em seus casamentos, sabendo da ventura da irmã caçula, resolvem aconselhá-la considerando seu marido um monstro, por isso, invisível. Insistem, então, para que a caçula surpreenda o monstro dormindo e o mate. Deflagra-se então a catástrofe:
executado o plano diabólico, Psiqué vê a seu lado o próprio Eros, por quem se apaixona loucamente. Uma gota de azeite fervente, porém, lhe cai no ombro. O deus desperta e, sem dizer palavra, abandona a amante. Segue-se a busca de Psiqué, sua luta contra a ira de Afrodite e a execução de quatro tarefas que a deusa lhe impõe. Abrindo a caixinha que lhe entregara Perséfone, a esposa do filho de Afrodite mergulha num sono letárgico. Eros a salva, e, imortalizada por Zeus, é festejada no Olimpo como esposa do eterno Amor (in: BRANDÃ O, 1988: p. 221).
NEUMANN (apud BRANDRÃ O, 1988) analisa as cinco partes do mito: a introdução, as núpcias da morte, a tentação de Psiqué e sua paixão, as quatro provas e o desfecho feliz com a imortalização da heroína considerando, dentre várias outras análises, que:
a vida de Psiqué no Éden sombrio de Eros é muito semelhante ao mito do herói engolido pela baleia-dragão-monstro. É bem verdade que a prisão de Psiqué nas trevas é superada, de certa forma, pelo prazer "mas também esta situação é arquetípica e não excepcional". Como no percurso da viagem marítima noturna o herói solar masculino acende uma luz no bojo do monstro e livra-se das trevas; igualmente Psiqué liberta-se da "noite", por estar equipada com luz e punhal. No mito solar masculino, todavia, a ação do herói é violenta, porque sua função principal é matar o monstro. Mesmo que se trate de aquisição de "conhecimento", o herói coloca em primeiro plano a morte e o desmembramento da baleia-dragão-monstro. Na variante feminina, a necessidade de "saber" permanece vinculada à outra maior, a necessidade de amar. Se bem que Psiqué seja compelida a ferir, ela continua a manter um nexo ainda mais forte com o seu amante, a quem jamais deixou de conciliar e transformar (p. 228).
O drama de Psiqué, a busca de sua individuação, tem grande profundidade e poder: a mulher emergindo de seu inconsciente e da clausura de seu aprisionamento - uma existência nas trevas não pode satisfazê-la.
Eros, um menino, um jovem, o filho-amante de sua Grande Mãe, transgrediu e amou Psiqué. Seu objetivo era que tudo se passasse em segredo, às ocultas de Afrodite. O oculto e egoístico paraíso sensual de Eros foi rompido por Psiqué e lançou os dois no destino da separação, que é a consciência.
Inicia-se, então, a parte mais dolorosa da iniciação de Psiqué: as quatro tarefas preparadas por Afrodite. No início de cada trabalho acomete-se de desespero e vê no suicídio a única saída. Sua viagem ao mundo ctônio significa que a morte deverá ser olhada de frente. No final de seu desenvolvimento, ela enfrentará a situação mortal como alguém transformado:
Essa viagem extrema tornar-se-á possível para Psiqué somente quando, através das tarefas, ela adquirir o conhecimento que de longe transcenderá seu mero conhecimento intuitivo inicial. Mercê de sua união com as formigas, o junco e a águia, a amante de Eros será capaz de adotar a atitude de conhecimento que é representado pela "Torre que vê longe" (BRANDÃ O, 1988: p. 237).
A cada tarefa cumprida, Psiqué transforma-se e transforma Eros. O final feliz, deve-se a Eros, que desperta a amada do sono da morte. Do enlace de Eros-Psiqué nasceu Volúpia - algo superior à sensualidade.
Diana - caçadora
No culto de Diana, deusa que simboliza a virgindade e a fecundidade, as autoridades cristãs reagiram negativamente na tentativa de demonstrar a imoralidade dos deuses da tradição pagã. As versões do mito de Diana, sobretudo a partir do século IV, revelam uma nuance e intenção cada vez mais eróticas:
é a castidade, mas também a sedução dos atractivos da deusa - que Homero e Eurípedes, e depois Virgílio e Ovídio, não se esqueceram de exaltar -, que fornecem o alimento da aventura. Depois, os baixos relevos e a pintura, como sabemos, deram desta cena visões prestigiosas. Não obstante, o motivo de Diana nua surpreendida por Actéon, umas vezes é explicado pela fatalidade, e outras por uma deliberada intenção de violação (KLOSSOWSKI, 1989: p. 78/79).
KLOSSOWSKI (1989) fala do Banho de Diana1, filha de Zeus e de Latona e irmã gêmea de Apolo. Na mitologia, Diana é o oposto de Afrodite mostrando-se impiedosa, sobretudo com as mulheres que cedem à atração do amor ao mesmo tempo que é protetora das mulheres grávidas por causa das criaturas esperadas. Apesar de ser virgem é a deusa dos partos, agindo como princípio fecundante.
Diana corre através dos montes com as ninfas suas companheiras e com a sua matilha pronta a atirar com o seu arco. Após as caçadas Diana lava-se não para se limpar da poeira que cobre o seu corpo e nem da transpiração, mas para purificar-se no contato com a água.
Em um desses momentos Actéon - filho do pastor Aristeu e de Autónoe, filha de Cádmo, iniciado na caça pelo centauro Quíron - surpreende Diana desarmada e nua e a profana com o olhar. O perigo e o risco não são só o da caçada, mas também o do banho após a caça: a mulher revela um corpo que afaga e vai confiar à água o seu segredo. Ao depor das suas armas seus dedos brincam sobre o umbigo e os mamilos endurecidos e as suas mãos.
que lavaram seu corpo, têm agora um gesto imprevisto de pudor, e revelando o que escondem, traem um ventre fecundável abaixo do qual a sua palma cobre o púbis saliente; mas a vulva escorrega-lhe por entre os dedos: ardil do demónio que lhe empresta estes visíveis encantos como o véu mais opaco da sua divindade. Impassível no ser onde ela habita um corpo inefável, feito de silêncio, mas sujeita, na sua teofania, às emoções de um corpo no qual ela se sabe desejada, Diana casta entrega-se à vergonha de oferecer encantos; e porque impassível, Diana cora aos olhos de Actéon; Diana cora da sua castidade" (Ibid., p. 61).
O outro gesto de suas mãos desarmadas é o de atirar água e com ela aspergir o rosto de Actéon. Esse gesto ritual e consagratório transforma o caçador em veado.
Por causa da metamorfose era impossível para Actéon descrever a nudez de Diana, os seus atrativos: se puderes, di-lo! A deusa afagava o côncavo de suas coxas e mostrava a sua vulva vermelha e os lábios secretos:
Actéon vê abrirem-se esses lábios infernais no preciso momento em que o jacto d'água lhe molha os olhos, o cega e o faz endireitar-se; o seu pensamento encontra o seu termo nas hastes que lhe nascem na testa, e o choque de um tal feito empurra-o para a frente; não se admira ele de ver os seus braços tornados pernas, as mãos tornadas pés fendidos, apoiar-se, num abrir e fechar de olhos, sobre os divinos ombros e todo o seu peludo ventre tremer contra a deslumbrante epiderme dos flancos molhados da deusa; e eis que este tremor é o da própria Diana desde que um homem ouse tocá-la, o tremor de Diana quando a sua mão, que ela sabe ser tão mortífera como bela, agarra pelo focinho um animal lascivo que lhe lambe a palma da mão; a água agitada pelo pisar do homem-veado, pelo movimento das longas pernas da deusa, que se fecham e se abrem; o arquejar da criatura cornuda, o gemido da caçadora desarmada; ela uiva pela voz de suas ninfas, e no seu uivo, ri-se; ele, com a sua falta de jeito de animal neófito, dá-lhe empurrões, ela liberta-se, e escapa-se, e ele volta a cair sobre ela e nela; ah!, estar tão perto do objetivo, e tão longe - este poço de silêncio que contraria a sua necessidade de falar deixa-o em fogo (Ibid., p. 65).
Astuciosamente Diana não completa a metamorfose. As pernas, o tronco e a cabeça de Actéon são de veado; o braço e a mão esquerda são conservados intactos:
a pata dianteira que fora a mão direita, deslizando do ombro da deusa ao longo das costas viradas para ele, procura apoiar-se na anca com pequenos puxões, contornando o flanco e passando sobre o ventre, tenta em vão alcançar o púbis, quando ela própria, de olhos baixos, com um sorriso que arrepanha um pouco os seus lábios cerrados, o consente por momentos; e com efeito, com a mão esquerda ainda intacta, ele agarra, com terror, o seio que não pode impedir-se de afagar; ela, virando-se, mas como se o observasse pelo canto do olho, levanta o braço, descobrindo o sovaco onde ele introduz o seu focinho com avidez apavorada, quando a sua língua, por fim, lhe lambe o mamilo; no mais magnífico corpo de que até hoje se revestiu, Diana estremece..." (Ibid., p. 66).
No mito de Diana perpassam os temas da purificação, do sagrado e do profano, da pureza e da impureza, do feminino e do masculino, da vida e da morte. A violação inscrita no olhar de Actéon, profanando a Deusa no momento da purificação com a água do banho, faz com que também essa água cumpra um ritual de transformação: de caçador em veado. A metamorfose impede a fala: torna-se impossível descrever a nudez e os atrativos de Diana.
Os mitos constituíram uma ameaça para a Igreja que se levantou muitas vezes contra o culto prestado ao profano. A devoção popular considerou o valor sagrado e sacralizante das águas.
Muitas são as pinturas no tema da mitologia que estão nesse Museu Imaginário das Águas, Gênero e Sexualidade. Objetivo que, em processos educativos subsequentes, possamos mergulhar na leveza e na profundidade das histórias, para navegar pela arte erótica.
Notas
1 Cf DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997. "Acteão surpreende a toilette da deusa, que, com os cabelos soltos, se banha e se mira nas águas profundas de uma gruta. Assustada pelos clamores das Ninfas, Ártemis, a deusa lunar, metamorfoseia Acteão em animal, em veado, e senhora dos cães lança a matilha para a carniça. Acteão é despedaçado, lacerado, e os seus restos dispersos sem sepultura fazem nascer lastimosas sombras que andam pelas sarças. Este mito reúne e resume todos os elementos simbólicos da constelação que estamos estudando. Nada lhe falta: teriomorfia, na sua forma fugaz devorante, água profunda, cabeleira, toilette feminina, gritos, dramatização negativa, tudo envolto numa atmosfera de terror e catástrofe" (p. 101).
Referências
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. 2ª edição. Volume II. Petrópolis: Editora Vozes, 1988.
KLOSSOWSKI, Pierre. O Banho de Diana. Tradução: Fernando Luís. Lisboa, Portugal: Edições Cotovia, 1989.