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Água
protetora


 As Obras

Essa água protetora foi pintada inúmeras vezes. E possibilita-nos navegar do leite ao seio. Bachelard (1989, p. 123, 124) cita a poesia do mar em Michelet e a imagem do seio intumescido de leite: "com suas carícias assíduas, arredondando a margem [o mar], deu-lhe seus contornos maternais, e eu ia dizer a ternura visível do seio da mulher, o que o filho acha tão suave, abrigo, tepidez e repouso".

Mergulhos

Há vários milhares de anos, desde a Antiguidade, a deusa Isis1 era adorada como doadora de leite, pois era concebida como Mãe Universal fornecedora de alimento. Outras deusas também eram adoradas pelos gregos como criaturas divinas e protetoras, tais como Deméter2, Perséfone3, Ártemis4, Diana5, Cibele6, Afrodite7, Atena8:

Além das muitas imagens de deusas e dos templos criados pelos artistas do mundo pagão, há que mencionar também a arte produzida na pré-história em homenagem à Mãe Deus. As primeiras imagens da Grande Deusa do Neolítico e do Paleolítico na Europa, que resistiram ao desgaste do tempo costumavam ser gravadas em pedra (MORAIS, 2006, p. 36).

Isso ameaçava o culto cristão quando este começou a se implementar. Assim, começou-se a reinterpretar imagens dessas deusas como imagens de Maria, no início do Cristianismo. Portanto, as imagens da Madona foram implantadas nas artes do Mundo Ocidental há cerca de mais de dois mil anos. A Virgem é mãe e protetora da humanidade.

Assim, a temática da Virgo Lactans - termo em latim que significa a amamentação ou leite da Virgem - foi extremamente explorada na iconografia. Em grego Galaktotrophousa. Cada pintura de Maria e Jesus reveste-se de inúmeros significados. À primeira vista significa o carinho da Madonna para com o seu bebê. Mas, cada uma delas navega pelos mares revoltos das relações de poder. A imagem da amamentação de Cristo tornou-se um tabu na arte italiana logo após o Concílio de Trento - 1545 a 1563. A crise que assolava a Igreja Católica no século XVI e o avanço, na Europa, do Protestantismo fez com que o Papa Paulo III convocasse um Concílio que foi realizado na cidade italiana de Trento. Interessa-nos aqui, dentre as decisões tomadas, a criação do Índice de livros proibidos (Index Librorium Proibitorium) e, principalmente, as proibições aos nus nas artes. A Sessão XXV, celebrada no tempo do Sumo Pontífice Pio IV, em 3 e 4 de dezembro de 1563:

Estabelece o Santo Concílio que a ninguém seja lícito pôr ou permitir que se ponha qualquer imagem nua e nova em lugar algum, nem mesmo igreja que seja de qualquer modo isenta de modo a não possuir aprovação do Bispo www.agnusdei.50webs.com/trento30.htm

Assim, a imagem da Madona, pintada no mundo Ocidental, negava a sensualidade e veiculava a virgindade. "Esse estado não só comprova a aversão da Igreja à sexualidade, particularmente das mulheres, mas também uma nova esperança de redenção do Pecado Original, uma redenção dos pecados da Eva sexual que, anteriormente, tinha lançado toda a humanidade na sua existência pecaminosa e inferior" (MORAIS, 2006, p. 82). A iconografia veiculava a salvação da humanidade do pecado da carne, a obediência à Deus:

Este legado cultural de grandes proporções é expressão de um sistema sócio-cultural que continua a dominar o mundo. Os museus de arte, galerias, palácios e coleções privadas estão cheios dos seus ícones. Ao longo dos séculos, as imagens da Virgem foram sendo criadas segundo as interpretações religiosas das crenças, mitos, iconografias e simbolismo prevalecentes em cada época (Id., p. 14).

As primeiras imagens de Maria foram provavelmente introduzidas na primeira iconografia cristã dos séculos II e III. "Os Evangelhos do Novo Testamento oficialmente aceites foram escritos por homens para um sistema social patriarcal, e nestes textos foram feitas muito poucas referências à Virgem" (Id., p. 60). Mas ela foi fundamental para "a aceitação do Cristianismo na Europa, tanto Oriental como Ocidental. A sua presença criou uma ponte que permitiu que os seguidores das religiões matriarcais, que adoravam as deusas, se juntassem ao novo culto patriarcal" (Id., p. 70). "Durante o século XIV, a Itália produziu uma grande quantidade de Madonas" (Id., p. 118) muitas delas amamentando o menino:

As imagens da Virgem a alimentar o Menino têm feito parte da tradição Mariana desde a Idade Média. O "leite de Maria" tem, na verdade, sido uma fonte de veneração como uma substância milagrosa. As origens desta tradição e o seu simbolismo recuam vários milhares de anos na Antiguidade, quando as deusas criadoras como Isis eram veneradas como simbólicas doadoras de leite nos seus papéis de Mães Universais misericordiosas e fornecedoras de alimentos (Id., p. 132).

Antes do Concílio de Trento as Virgens eram pintadas com os seios à mostra. O seio está ligado à proteção, à fertilidade e ao leite, símbolos da doçura e da segurança. Ao seio associam-se imagens de intimidade, de oferenda, de dádiva e de refúgio; ao leite as imagens de crescimento; o leite é um símbolo lunar, feminino por excelência. A seguir, em várias épocas, as Virgo Lactans:




www.3pipe.net/2011/03/not-renaissance-marian-symbolism.html.


Os aprendizados com Bachelard (1989, p. 121) possibilitam afirmar que "tudo o que escoa é água". Logo, toda "água é um leite" (...) "A boca, os lábios - eis o terreno da primeira felicidade positiva e precisa, o terreno da sensualidade permitida". (Id., p. 122):

Evidentemente, é a imagem diretamente humana do leite que constitui o suporte psicológico do hino védico mencionado por Saintyves: "As águas que são as nossas mães e que desejam tomar parte nos sacrifícios vêm até nós seguindo os seus caminhos e nos distribuem o seu leite". (...) poderíamos dizer que, para a imaginação material, a água, como o leite, é um alimento completo (Id., p. 122).

Essa água protetora foi pintada inúmeras vezes. E possibilita-nos navegar do leite ao seio. Bachelard (1989, p. 123, 124) cita a poesia do mar em Michelet e a imagem do seio intumescido de leite: "com suas carícias assíduas, arredondando a margem [o mar], deu-lhe seus contornos maternais, e eu ia dizer a ternura visível do seio da mulher, o que o filho acha tão suave, abrigo, tepidez e repouso".

Da imaginação do leite à imaginação do oceano. Da proteção, da nutrição ao embalo. "Quando entra na água maravilhosa, a primeira impressão do sonhador é a de "repousar entre as nuvens, na púrpura da noite" Um pouco mais tarde, acreditará estar "estendido sobre uma relva macia". Qual é, pois, a verdadeira matéria que conduz o sonhador? Não é nem a nuvem nem o macio relvado, é a água". (Id., p. 135, 136).

O único dos quatro elementos - ar, terra, fogo e água - que pode embalar é a água: "ela embala como uma mãe" (Id., p. 136). Na iconografia pesquisada para este Museu Imaginário das Águas, Gênero e Sexualidade deparei-me com várias pinturas em que as pessoas estão - tranquilamente - deitadas em barcos, sobre as águas, a devanear:

A barca ociosa oferece as mesmas delícias, suscita os mesmos devaneios. Ela proporciona, diz Lamartine, sem a menor hesitação, "uma das mais misteriosas volúpias da natureza". Inumeráveis referências literárias provariam facilmente que a barca encantatória, que a barca romântica é, sob certos aspectos, um berço reconquistado. Longas horas despreocupadas e tranquilas, longas horas em que, deitados no fundo da barca solitária, contemplamos o céu, a que lembranças nos entregais? Todas as imagens estão ausentes, o céu está vazio, mas o movimento está ali, vivo, sem embate, ritmado - é o movimento quase imóvel, silencioso. A água leva-nos. A água embala-nos. A água adormece-nos. A água devolve-nos a nossa mãe. (Id., p. 136).

A água leite embala, nutre, alimenta. Algumas pinturas contam a história da Caritas Romana - em latim - é a história de Pero que amamenta seu pai Cimon, secretamente na prisão. Ele foi preso e condenado a morte por inanição. O ato de sua filha sensibilizou os responsáveis pela prisão e resolveram libertá-lo. Essa história consta dos nove livros de memoráveis atos e ditados dos antigos romanos escritos pelo historiador Valerio Maximus. Vários pintores registraram esse tema.



Cimon and Pero: Caritas Romana
Peter Paul Rubens
1630



Sete atos de caridade
Michelangelo Merisi di Caravaggio
1607



Jean-Baptiste Greuze - 1725-1805
Cimon and Pero: "Roman Charity"
The J. Paul Getty Museum



Carlo Cignani
Roman Charity



Cimon and Pero - Roman Charity
Giovanni Andrea Sirani
1610

Quantas histórias foram representadas no decorrer da história da humanidade. Quantas representações navegaram pelas relações de poder, ou se submeteram aos discursos religiosos dentre tantos outros. Assumo o conceito de representação:

Na análise cultural mais recente, refere-se às formas textuais e visuais através das quais se descrevem os diferentes grupos culturais e suas características. No contexto dos Estudos Culturais, a análise da representação concentra-se em sua expressão material como "significante": um texto, uma pintura, um filme, uma fotografia (SILVA, 2000).

Essas expressões - cristalizadas nas pinturas - podem instigar as reflexões sobre gênero e sexualidade e suas multiplicidades de crenças, costumes, discursos. "Nada há de exclusivamente 'natural' neste terreno, a começar pela própria concepção de corpo, ou mesmo de natureza, pois, através de processos culturais, definimos o que é - ou não - natural" (LOURO, 2000, p. 62).

Mergulhar, portanto, nesse Museu Imaginário das Águas, Gênero e Sexualidade e deixar-se inundar por reflexões que naveguem pelo dito imbricado no não dito; pelos discursos admitidos imbricados nos excluídos pensando com Foucault que:

Os discursos, como os silêncios, não são submetidos de uma vez por todas ao poder, nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora e ponto de resistência e ponto de uma estratégia oposta. O discurso veicula e produz poder; reforça-o mas também o mina, expõe, delimita e permite barra-lo. Da mesma forma o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições; mas também, afrouxam seus laços e dão margens e tolerâncias mais ou menos obscuras (1988, p. 96).

Nesse jogo complexo o convite é para assumir rizomaticamente os processos educativos em gênero e sexualidade - mediados por extensa iconografia - e pensar junto com Sílvio Gallo "A Filosofia da Diferença" considerando os estudos de Nietszche, Heidegger, Foucault, Derrida e Deleuze. Gallo (2011, p. 22,23), no texto intitulado "Identidade, diversidade, universalidade e educação: experimentar minorações na língua e na educação" diz que "produzir diferenças é o que nos possibilita a ação militante de uma educação menor no cotidiano da sala de aula, à diferença de uma educação maior representada nas políticas públicas que apontam para uma diversidade que se resolve na universalidade. Esta ação é marcadamente política".

Uma enxurrada de desafios!

Notas

1 Deusa da mitologia egípcia desde 2500 a.C. Era adorada pelo mundo greco-romano. Deusa da maternidade e da fertilidade. Tal como Maria tinha um filho divino Órus.

2 Deusa grega da agricultura.

3 Filha de Deméter; deusa das ervas, flores, frutos e perfumes.

4 Deusa grega protetora dos caçadores e dos arqueiros. Também protetora da castidade, da fecundidade, das crianças e dos seres indefesos.

5 Deusa romana da lua e da caça.

6 Deusa mãe romana que simbolizava a fertilidade da natureza.

7 Deusa grega do amor, da beleza e da sexualidade. Vênus na mitologia romana

8 Deusa da guerra, da civilização, da sabedoria, da estratégia, das artes, da justiça e da habilidade.

Referências

BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. Tradução: Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989. Coleção Tópicos.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. Tradução de Albuquer, M.T. e ALBUQUERQUE, J.A. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

GALLO, Sílvio. Identidade, diversidade, universalidade e educação: experimentar minorações na língua e na educação. IN: SEVERINO, Antonio Joaquim; ALMEIDA, Cleide Rita Silvério de e LORIERI, Marcos Antonio. Perspectivas da Filosofia da Educação. São Paulo: Cortez Editora, 2011.

LOURO, Guacira Lopes. Currículo, Género e Sexualidade. Lisboa, PT: Porto Editora, 2000.

MORAIS, Zita (trad.). Madonas. Lisboa/Portugal. Lisma - Edição e Distribuição de Livros, Ltda. 2006.

SILVA, Tomaz Tadeu. Teoria Cultural e Educação: um vocabulário crítico. Velo Horizonte, Autêntica, 2000.


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