Mergulhos1
Por sua virtude, a água apaga todas as infrações e toda a mácula. Há uma multivalência religiosa da água e inúmeros cultos e ritos são realizados em fontes, rios, ribeiras. "Cultos que se devem, em primeiro lugar, ao valor sagrado que a água incorpora em si, como elemento cosmogónico, mas também à epifania local, logo manifestação da presença sagrada em certo curso de água ou em certa fonte. (...) a água corre, é "viva", agita-se; inspira, cura, profetiza. Em si mesmos, a fonte ou o rio manifestam o poder, a vida, a perenidade; eles são e são vivos (ELIADE, 1994, p. 256):
Homero conhecia o culto dos rios (...) é inútil citar toda a mitologia aquática dos gregos. Ela é vasta e de contornos imprecisos. Em perpétuo escoamento, inúmeras figuras míticas aparecem, repetindo o mesmo motivo fundamental: as divindades das águas nascem das águas. Algumas destas figuras alcançaram importantes lugares na mitologia ou na lenda como é o caso de Tétis, ninfa marinha, de Proteu, Glaucos, Nereu e Trítone, divindades neptunianas cuja figura denuncia uma imperfeita origem nas águas, com os seus corpos de monstros marinhos, caudas de peixe, etc. (Id., 260, 261).
Este autor exemplifica ao dizer que as ninfas foram criadas pelo curso vivo da água, pela magia, pela força que dela emanava, pelo seu murmúrio e cita as mais célebres: as irmãs de Tétis, as Nereides ou, como lhes chama Hesíodo, as Oceanides, ninfas neptunianas por excelência (Id., 261). Apresenta também outros emblemas da água:
Os dragões, as conchas, os delfins, os peixes, são emblemas da água; (264) escondidos na profundidade do oceano, são infusos pela força sagrada do abismo; dormindo em lagos ou atravessando os rios, distribuem a chuva, a humidade, a inundação, regulando assim a fecundidade do mundo (Id., 265).
Enfim, são formas de purificação pela água. Eliade diz que "na água, tudo se "dissolve", toda a "forma" se desintegra, toda a "história" é abolida; nada do que anteriormente existiu subsiste após uma imersão na água, nenhum perfil, nenhum "sinal", nenhum "acontecimento". A imersão equivale no plano humano, à morte, e no plano cósmico, à catástrofe (o dilúvio) que dissolve periodicamente o mundo no oceano primordial (Id., 250).
Imersão na água e aspersão. Para Bachelard a aspersão é a primitiva operação purificadora, grande e arquetípica imagem psicológica. A lavagem não passa de grosseira e exotérica duplicação. A água não só contém a pureza, mas também irradia a pureza2:
água lustral tem um valor moral: não atua por lavagem quantitativa mas torna-se a própria substância da pureza, algumas gotas de água chegam para purificar um mundo inteiro (DURAND, 1997: p. 172).
A água do batismo3 lava os pecados e faz aceder ao estado de homem novo e mulher nova. Os ritos de batismo incluem a imersão e a emersão; indica o desaparecimento do/da pecador/a nas águas da morte e o retorno às fontes de origem da vida. A emersão revela a aparição do ser purificado.
Este simbolismo imemorial e ecuménico da imersão na água como instrumento de purificação e de regeneração foi aceite pelo cristianismo e enriquecido por novas valências religiosas. O baptismo de São João procurava não a cura das enfermidades corpóreas, mas a redenção da alma, o perdão dos pecados (ELIADE, 1994, p. 252).
Simboliza a supressão do pecado, uma integração à Igreja, à sociedade, à cristandade e uma promessa de salvação. A aspersão substituiu a imersão. O simbolismo da água regeneradora toma então o lugar da água fonte de vida, passagem da morte à ressurreição. O batismo4, banho de regeneração, sepulta o pecado na água.
Até o começo do século VIII, homens e mulheres eram batizados nus na piscina na noite do Sábado Santo. Nus como Adão e Eva na Criação, saíam da água mortos para o pecado e ressuscitados para a vida eterna:
A nudez constituía então uma afirmação de sua condição de criatura boa mas dependente de deus, antes do pecado ou sem este. O nu cristão representa um ser criado; o nu pagão, um ser procriador. O desaparecimento do batismo por imersão na época carolíngia suscitou a retomada, podemos dizer, do simbolismo pagão e deu à nudez um significado sexual e genital que ela não tinha. Já no século VI foi preciso desaparecer com os crucifixos em que Cristo figurava nu como todos os escravos condenados ao mesmo suplício (ROUCHE, 1990: p. 439).
O rito do batismo era uma forma de atender ao adágio bíblico "despir o velho humano e colocar o novo humano, Cristo". Os cristãos esbarravam nas regulamentações sociais vigentes, colocando em xeque o banho coletivo, uma das mais importantes experiências cívicas pagãs. Para eles a imersão religiosa era mais pessoal do que cívica. (SENNETT, 1997):
O batismo significava que o indivíduo sentia-se suficientemente distanciado do desejo corporal e em condições de assumir o compromisso da fé, válido para toda a vida. Quem se reputava pronto para o ritual, despia-se completamente e mergulhava na banheira, colocada em um cômodo separado daquele em que se davam os encontros habituais. Saindo d'água o neófito vestia roupas inteiramente novas, indicativas de que se tornara uma outra pessoa. "O banho [tornou-se] um marco permanente entre o grupo "limpo" e o mundo "sujo" (MEEKS, Wayne A. apud SENNETT, 1997: p. 123).
Nos primeiros tempos da Igreja as crianças não eram batizadas, pois o batismo implicava a decisão mais séria que se podia tomar em vida e exigia o discernimento do adulto. O batismo rompeu com o preceito que regia a Roma pagã de "olhar e acreditar". O cristão batizado era portador de um segredo, incognoscível. Não deixava marca como a circuncisão. Uma passagem do Novo Testamento refere-se ao batismo como a "circuncisão de Cristo". O pênis não sofria nenhuma alteração e, portanto, os judeus do sexo masculino não poderiam ser identificados e perseguidos (Ibid.).
Muitas são as tradições concordantes em valorizar positivamente o banho, mas a exagerada pudicícia cristã inverteu o símbolo, condenando o uso do banho como um atentado à castidade. Na Idade Média os banhos públicos eram considerados como lugares de libertinagem e, dessa forma, proibidos aos cristãos.
O corpo iluminado pelo prazer dos sentidos inspirava uma reforma espiritual. A água da salvação inspirou o poeta de Estrasburgo Thomas Murner sua Badenfahrt, publicada em 1514; alegoria da conversão ao apelo de Cristo, embocando a trombeta do mestre do banho:
Então Deus, apiedando-se de nós/ Começou a nos ensinar/ Como se deve ir para o banho/ Lavar-se, purificar-se, perder toda a vergonha/ Na força e poder de Seu santo nome./ Ele o fez tão publicamente/ Que o mundo inteiro o viu:/ Ninguém poderia dizer na verdade,/ Nem dizer nem se lamentar/ De não ter sabido/ Como deve banhar-se, purificar-se,/ Purificar-se novamente em Deus/ Erguer-se como um novo Adão/ Que o batismo ressuscita./ Pois Deus nos concede em Sua Graça/ Que nenhum pecado original nos esmague mais./ Isso foi realizado por Deus tão abertamente/ Que o mundo inteiro o viu:/ Foi o próprio Deus quem nos chamou para o banho ao som da trombeta. (BRAUNSTEIN, 1990: p. 598).
O convite ao banho era um convite a deixar de lado os pecados, os vícios. A conversão não era uma busca distante, mas um caminhar cotidiano iluminado pelo sentido. A vida do corpo, dessa forma, era uma demonstração de vida espiritual. Amor sagrado; amor profano: o corpo e a água eram símbolo e receptáculo do espírito:
O banho da alma
a cura termal | a purificação |
convidar ao banho | a revelação |
reconhecer-se justo | a confissão |
despir-se | depor seus vícios |
apresentar-se nu diante de Deus | a vergonha |
lavar os pés | a humildade |
esfregar seu corpo | escutar a confissão |
limpar sua pele | a penitência |
fustigar-se com galhos | despertar o ardor |
o roupão | a mortalha |
o banho de óleo | batismo e extrema-unção |
o banho cotidiano | a missa |
o banho termal | a conversão antes da morte |
agradecer ao mestre do banho | ação de graças |
(BRAUNSTEIN, 1990: p. 599).
A multidão anônima dos corpos nos banhos públicos fez o homem recear a perda da identidade. Os trajes eram ligados ao íntimo e suscitavam as imagens de si no final da Idade Média. Sem eles perdia-se a identidade. O homem social era o homem vestido. A Renascença não era apenas visão espacial da felicidade, era também visão profunda de uma caminhada interior.
A figura do Cristo nu parecia indecente e perigosa, pois corria-se o risco da adoração, pelas mulheres, de um deus da fertilidade. O corpo tinha que ser vestido, banhado, penteado e enfeitado. São Bento, em sua regra, recomendou que os monges dormissem vestidos e quando soasse o sinal, levantassem sem demora a fim de consagrar-se à obra de Deus (ROUCHE, 1990).
Na iconografia do século XV a figura do Cristo não aparece nua como por exemplo O Baptismo de Cristo, Piero della Francesca (1440-45) e o Baptismo dos Reconvertidos, Masaccio (1425).
A água, além de purificadora e regeneradora é também fertilizante. Por tal razão os banhos rituais de noivos e a imersão de mulheres estéreis em variados lagos ou bacias formados por fontes sagradas.
A imersão por água virgem é reencontrada nas tradições de numerosos povos associada a ritos de passagem tanto em relação ao nascimento, quanto à morte. A imersão é uma imagem de regressão uterina que infunde calma, segurança, ternura, de retorno à fonte da vida e lhe confere o valor de um ritual de iniciação. Muitos são os mitos, crenças e costumes, por exemplo, num ritual da África Central, para a entrada em uma sociedade secreta, extremamente fechada, de feiticeiras:
a noviça, drogada, é sepultada durante vinte e quatro horas numa cavidade estanque preparada por baixo do leito de um riacho, no coração da floresta equatorial: os símbolos da floresta-ventre, da água-mãe, e do tempo a fluir como a água dos rios, associados ao do esconderijo uterino formam, neste caso, um complexo simbólico de tamanha força que os iniciados dessa confraria praticamente se esquecem do curso de sua vida anterior (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1998: p. 119).
Entre os gregos, estátuas das deusas como as de Atena e Hera eram ritualmente mergulhadas em banhos purificadores. Na Idade Média fazia-se a mesma coisa antes da sagração dos cavaleiros.
A água se torna símbolo de vida espiritual e do Espírito, oferecidos por Deus. Jesus retoma esse simbolismo no seu diálogo com a samaritana: Aquele que beber da água que eu lhe darei não terá mais sede... A água que eu lhe darei se tornará nele fonte de água a jorrar em vida eterna (João, 4, versículo 4). Jesus Cristo se revela Senhor da água viva à samaritana (João 4, versículo 10).
O Rig Veda, primeiro e mais importante dos quatro Vedas, foi escrito em sânscrito e forma a base da religião bramânica; exalta as Águas que trazem vida, força e pureza, no plano espiritual e no corporal:
"Vós, as Águas, que reconfortais,
trazei-nos a força,
a grandeza, a alegria, a visão!
... Soberanas das maravilhas,
regentes dos povos, as Águas!
... Vós, as Águas, dai sua plenitude ao remédio,
a fim de que ele seja uma couraça para o meu corpo,
e que assim eu veja por muito tempo o sol!
... Vós, as Águas, levai daqui esta coisa,
este pecado, qualquer que ele seja, que cometi,
esse malfeito que fiz, a quem quer que seja,
essa jura mentirosa que jurei"
(Da tradução francesa de Jean Verenne apud CHEVALIER & GHEERBRANT, 1998: p. 15).
A água sagrada estava presente no exercício das devoções, não somente no batismo. Para se alcançar uma graça havia peregrinações até um lugar consagrado, geralmente, uma capela isolada nas cercanias de uma fonte onde os peregrinos banhavam-se, além de fazer as orações rituais, beijarem a estátua ou relicário do santo. Na impossibilidade da realização da peregrinação, outra pessoa molhava um pedaço de tecido na água e, na volta, colocava sobre o enfermo.
Nos Catecismos do século XVII, dentre outras prescrições, na realização da oração individual matinal e a noturna, havia a sugestão da ingestão da água benta.
O convite é para o devaneio frente as obras da água purificadora.
Notas
1 Partes deste texto integram a tese de doutorado: RIBEIRO ANDRADE, Cláudia Maria. O imaginário das águas, Eros e a criança. Campinas (SP): UNICAMP, 2001.
2 Cf DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes. 1997. "Não é a pureza, na sua quintessência, raio, relâmpago e deslumbramento espontâneo? O segundo aspecto, que equivale sensorialmente à limpeza da água lustral e lhe reforça a pureza é o frescor. Este frescor funciona em oposição com a tepidez cotidiana. A queimadura do fogo também é purificadora, pois o que se exige da purificação é que, pelos seus excessos, rompa com a tepidez carnal do mesmo modo que com a penumbra da confusão mental (...) Bachelard também nota que, antes de tudo, a água de juventude "acorda" o organismo. A água lustral é a água que faz viver para além do pecado a carne e a condição mortal. A história das religiões vem uma vez mais completar a análise psicológica: "a água viva", a "água celeste" encontra-se tanto nos Upanixades como na Bíblia e nas tradições célticas e romanas" (p. 172, 173).
3 Cf. GIBIN, Maucyr. A Nova Liturgia da Semana Santa. 2a. edição. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1971. Benção da água: Ó Deus, pelos sinais visíveis dos sacramentos realizais maravilhas invisíveis. Ao longo da história da salvação, vós vos servistes da água para fazer-nos conhecer a graça do batismo. Já na origem do mundo, vosso espírito pairava sobre as águas para que fossem capazes de gerar a vida. Nas águas do dilúvio pusestes fim aos vícios e, ao mesmo tempo, fizestes surgir para a humanidade um novo começo. Concedestes aos filhos de Abraão atravessar o mar Vermelho a pé enxuto, para que prefigurassem, livres da escravidão, o povo nascido da água batismal. Ao ser batizado nas águas do Jordão, é que o vosso Filho foi ungido pelo Espírito Santo. Pendente da cruz, do seu coração aberto pela lança fez correrem sangue e água. Após sua ressurreição, ordenou aos discípulos: "Ide, ensinai a todos os povos, e batizai-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo". Olhai agora, ó Pai, a vossa Igreja, e fazei brotar para ela a água do batismo. Conceda-nos o Espírito Santo, por esta água, a graça do Cristo, a fim de que o homem, criado a Vossa imagem, seja lavado da antiga culpa e renasça pela água e pelo espírito para uma vida nova" (p. 157, 158).
4 Cf. Gregório, bispo de Nazianzo, Capadócia. In: FRANGIOTTI, Roque. Justino de Roma. O Batismo: iluminação e regeneração, SP, Paulus, 1995.
"O Batismo é o mais belo e o
Mais magnífico Dom de Deus (...)
Chamamo-lo de Dom, graça, iluminação,
Veste de incorruptibilidade,
Banho de regeneração,
Selo, e tudo que existe de mais precioso.
Dom, porque é conferido àqueles que nada trazem;
Graça, porque é dado até a culpados;
Batismo, porque o pecado é sepultado na água;
Unção, porque é sagrado e régio (tais são os ungidos);
Iluminação, porque é luz resplandecente;
Veste, porque cobre a nossa vergonha;
Banho, porque lava;
Selo, porque nos guarda e
É o sinal do senhorio de Deus"
Referências
BRAUNSTEIN, Philippe. Abordagens da Intimidade nos séculos XIV-XV. In: História da Vida Privada. Vol.II: Da Europa Feudal à Renascença. Organização: George Duby; tradução: Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 12ª ed. Colaboração: André Barbault et al.; coordenação Carlos Sussekind; tradução: Vera da Costa e Silva et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. Introdução à Arquetipologia Geral. Tradução: Helder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997. (Ensino Superior).
ELIADE, Mircea. Tratado das Religiões. Prefácio Georges Dumézil. Tradução: Fernando Tomaz; Natália Nunes. Porto: Portugal, Edições Asa, 2ª. ed., 1994
ROUCHE, Michel. Alta Idade Média Ocidental. In: História da Vida Privada. Vol. I: Do Império Romano ao Ano Mil. Organização: Paul Veyne; tradução: Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
SENNETT, Richard. Carne e Pedra. O Corpo e a Cidade na Civilização Ocidental. Tradução: Marcos Aarão Reis. Rio de Janeiro: Record, 1997.