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Correnteza

(...) Quando articulo imaginário, gênero e sexualidade remeto às discussões efetivadas com o Prof. Alberto Filipe Araújo: "o imaginário é como a água que se infiltra nas estruturas mais compactas e rígidas - sociais, políticas, econômicas, culturais, históricas, pedagógicas - deixando indubitavelmente a sua marca, que pode ser da mais discreta à mais penetrante". Acrescento a esta afirmação: gênero e sexualidade também - penetram nas instituições sociais (...)

Só com uma imagem que expressasse intensidade poderia iniciar o que intitulo de "Correnteza" - espaço no e do Museu Imaginário das Águas, Gênero e Sexualidade reservado aos conceitos que inundam este trabalho. Reportei-me, então, ao Rio Danúbio e o misto de sensações ao vê-lo nove metros acima do limite. Na chegada a Budapeste - capital da Hungria - já sabia da surpreendente enchente deste rio - há 500 anos não enchia assim. Houve uma época que o Danúbio encheu tanto que invadiu Peste e acabou com tudo. Muitas reconstruções! Foram feitas muralhas embaixo da terra e é isso que contém o rio hoje. O cenário desencadeava sentimentos contraditórios. Uma avalanche de água ao meu lado... Cheguei lá no domingo, dia 9 de junho e muitas, muitas pessoas estavam às suas margens fotografando e levando as crianças para assistirem um fato histórico. Impressionante ficar lado a lado com a correnteza e poder tocá-la com as mãos... sabendo-a nove metros acima do curso normal do rio. Penetrei, então, entre as cadeias montanhosas de Buda e a planície de Peste. Penetrei também na sua história, tendo a oportunidade de conhecer muitos milhares de anos de intensos acontecimentos. A cidade que existe hoje era habitada desde a pré-história e os materiais das Idades da Pedra, do Bronze e do Ferro encontram-se no Museu Nacional. Depois Romanos, Hunos, Godos, Lombardos, Ávaros, sendo o império destes últimos destruído por Carlos Magno. Buda e Peste foram se desenvolvendo até 1241 quando houve a devastação pelos Tártaros. A cidade tornou-se cada vez mais forte e em finais do século XIV fixou-se aí a residência real. Buda, no século XV, já possuía as características de uma cidade renascentista com edifícios, institutos, indústria, comércio e já se comparava ao nível europeu. Em 1541 os turcos invadiram parte do país ocupando também Buda. Foram 150 anos de domínio turco. Surgiram então as construções de estilo oriental: mesquitas, moradias, os Banhos de Király, o túmulo de Gül Baba. Em 1686 as tropas cristãs tomaram a cidade e Buda foi destruída. No século XIX a aristocracia, a nobreza e os cidadãos transformaram a cidade num centro cultural e econômico. Em 1848 ambas as cidades tornaram-se centro da vida política; tomaram impulso após o Compromisso de 1867 e, em 1872, houve a unificação de Buda, Peste e Óbuda. Anos de crescimento econômico! Mas a Primeira Guerra Mundial travou o extraordinário desenvolvimento de Budapeste ficando a cidade em ruínas durante a Segunda Guerra Mundial. Na sua fuga, os alemães fizeram explodir as pontes do Danúbio e todos os edifícios importantes da cidade sofreram danos. Imaginem minha emoção ao transitar, a pé, pela Ponte da Liberdade, Ponte das Cadeias, Ponte Elisabete e pensar que, essa cidade, apesar de ter sido reduzida a escombros várias vezes, sempre teve forças para renascer. E hoje, politicamente? Tanto a dizer... e hoje, culturalmente? Budapeste é um dos centros culturais mais importantes do mundo. Muitos, muitos, muitos concertos estão à disposição - pagos ou não! Em teatros, casas de espetáculos ou mesmo na rua. Assisti Mozar, Liszt e Vivaldi. Dentre as músicas, uma das que mais gosto: The Four Seasons de Vivaldi. Quatro estações que borbulham mudanças!

Assim, viajar, visitar cidades com seus museus, suas histórias, suas construções e reconstruções desafiam a configurar lugares reais e simbólicos e possibilitam navegar entre o passado e o presente vislumbrando o futuro - tentando colocar-se em suspeição para não afogar em metanarrativas, em delírios classificatórios e dicotomias. Desafios tão grandiosos, pois exigem aventurar-se por conceitos que demandam anos e anos de aprofundamento.

Quando articulo imaginário, gênero e sexualidade remeto às discussões efetivadas com o Prof. Alberto Filipe Araújo: "o imaginário é como a água que se infiltra nas estruturas mais compactas e rígidas - sociais, políticas, econômicas, culturais, históricas, pedagógicas - deixando indubitavelmente a sua marca, que pode ser da mais discreta à mais penetrante". Acrescento a esta afirmação: gênero e sexualidade também - penetram nas instituições sociais. Meyer e Klein (2013) dizem que:

Isso implica considerar, dentre outras coisas, que as instituições sociais, os símbolos, as normas, os conhecimentos, as leis, as doutrinas e as políticas de uma sociedade são constituídas e atravessadas por pressupostos de gênero, ao mesmo tempo em que estão implicadas com sua produção, manutenção e ressignificação. Enfatiza-se a necessidade de compreender os diferentes modos pelos quais o gênero opera estruturando o social e é esta dimensão do conceito que priorizamos (p. 4).

Ora, se as relações de gênero e o imaginário infiltram, atravessam, constituem, estruturam o social, também a sexualidade. Foucault incita-nos a pensar em dispositivo:

Um conjunto decididamente heterogêneo, que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas; enfim, o dito e o não dito são elementos do dispositivo. O dispositivo, portanto, é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos (FOUCAULT, 1996, p. 244).

Assumo aqui estes conceitos de gênero e sexualidade e amplio o conceito de imaginário, não como fuga da realidade. "Faz parte dela, quanto mais que a realidade social é também uma construção. O estudo sistemático das produções do imaginário efetivo propicia o acesso a aspectos mais profundos dessa realidade, disfarçados pela roupagem colorida do fantástico" (AUGRAS, 2009, p. 10).

Os dicionários dizem que a palavra imaginário significa algo que só existe na imaginação; ilusório; fantástico. Autores como Sartre e Lacan atribuíram status inferior à imagem:

Na cultura ocidental que, até hoje, assumiu forte compromisso com o racionalismo, o imaginário será, por conseguinte, o lado oposto ao da razão, pura expressão da imaginação, que os franceses - não fossem eles filhos de Descartes - chamam la folle du logis, isto é, "a louca da casa". E, de fato, os primeiros autores a falarem do imaginário situam-no claramente na vertente da ilusão e da irracionalidade (Id., p. 209).

Bachelard, então, ocupou uma posição singular entre os teóricos do imaginário "ele vai desenvolver paralelamente uma produção que valoriza a criação poética" (Id., p. 217) (...) "faz do imaginário, em vez de um modo de alienação, o lugar onde se elaboram os meios mais requintados de se abrir ao mundo" (Id., p. 221).

Gilbert Durand, discípulo de Bachelard, faz da temática do imaginário, desde seu livro As estruturas antropológicas do imaginário, escrito em 1960, "uma confluência unificadora de todas as ciências humanas e sociais" (Id., p. 221) (...) "A definição do imaginário como capital antropológico possibilita estabelecer o diálogo entre as diversas ciências do homem (e acrescento, da mulher). Não mais antagonismo entre razão e imaginação, que são, ambas, ferramentas na construção do mundo" (Id., 222).

Nessa construção do mundo, navegando pela filosofia, teologia, psicologia, sociologia, etnografia, psicanálise, teorias estéticas, literárias, linguísticas, dentre outras disciplinas ou mesmo tentando borrar os limites disciplinares, o imaginário das águas possibilita-nos refletir sobre o mundo. Para tanto, precisar os conceitos que são bússolas para esta viagem é fundamental. Proponho, então, a imersão numa correnteza de conceitos: imaginário, museu imaginário, imaginário das águas, sexualidade, arte erótica, gênero, rizoma, metamorfose, viagem, experiência, Dionísio, poder/resistência.

Imaginário

  • Imaginário - ou seja, o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens - aparece-nos como o grande denominador fundamental onde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano (DURAND, 1997, p. 18).
  • O imaginário na obra de Gilbert Durand é um conjunto vasto de significados, fantasmas, lembranças, sonhos, devaneios, crenças, mitos, romance, ficção (TEIXEIRA e ARAÚJO, 2011, p. 41).
  • A contribuição do pensamento de Gilbert Durand para a educação: é por meio do imaginário que nos reconhecemos como humanos, conhecemos o outro e apreendemos a realidade múltipla do mundo (id., 77).
  • Principal tarefa da pedagogia do imaginário: inventariar os recursos imaginários (id., p. 86).
  • Simbólico é aquilo que implica alguma coisa além do seu significado manifesto (id., p. 86).
  • Educação do imaginário - ativar fantasias, mitos, utopias como forma de superar o falso conflito entre razão e imaginação (ARAÚJO, ARAÚJO e RIBEIRO, 2012, p. 14).
  • O conceito de imaginário é interdisciplinar: filosofia, teologia, psicologia, sociologia, etnografia, psicanálise, teorias estéticas, literárias, linguísticas (ARAÚJO e ARAÚJO, 2009).
  • A pedagogia do imaginário baseada numa poética do devaneio sabe perturbar a razão através das "hormonas da imaginação" enquanto reservas de entusiasmo (id., p. 54).
  • Podemos elaborar um atlas de imagens que desempenham um papel estimulante na atividade cognitiva e estética (id., p. 35).
  • O projeto da modernidade sob o signo de Prometeu: esta figura representa o poder do ser humano face à natureza, pois, tal como o titã desafiou os deuses, também agora o Homem enfrenta o mundo através do poder da Razão e da Técnica, dominando os elementos e modelando tudo à sua imagem (RIBEIRO, 2011, p. 9).
  • "Museu Imaginário" - manifestação das obras da imaginação humana - dá a meditar ao educador (DUBORGEL, 1992, p. 295).
  • A imaginação é um poder demiúrgico ... ela é aquilo através do qual o homem se representa a si próprio, ao elaborar as figuras dos "deuses" e dos "heróis". O sujeito imaginante é artesão e leitor de mitologia, no centro do "museu imaginário" (Id., p. 295).
  • Abrir as portas do Museu Imaginário - maravilhoso e antropológico repertório de símbolos - tanto iconográficos e rituais como mitológicos e poéticos (Id., 298 p.).
  • Pedagogia da imaginação - colocar a disposição vastas amostras do Museu Imaginário (Id., p. 301).
  • O novo espírito pedagógico da imaginação nem é a formação de eruditos nem a de críticos literários; ela aspira, acima de tudo, ao acto de uma leitura dinâmica, encantada e criativa (Id., p. 313).
  • O "sagrado" ou a "divindade" pode ser significado por não importa o quê: uma pedra erguida, uma árvore gigante, uma águia, uma serpente, um planeta, uma encarnação humana como Jesus, Buda ou Krishna, ou até pelo apelo à Infância que permanece em nós (DURAND, 1993, p. 13).
  • Símbolo - signo que remete para um indizível e invisível significado e, deste modo, sendo obrigado a encarnar concretamente esta adequação que lhe escapa, e isto atrás do jogo das redundâncias míticas, rituais, iconográficas, que corrigem e completam inesgotavelmente a inadequação (Id., p. 16).
  • O poder poético do símbolo define a liberdade humana melhor do que qualquer especulação filosófica (Id., p. 33).
  • A difusão das obras-primas da cultura (...) permitiam uma confrontação planetária das culturas e um recenseamento total dos temas, dos ícones e das imagens num Museu Imaginário generalizado a todas as manifestações culturais (Id., p. 103).
  • A imaginação sempre tem irrigado, inervado, estruturado nossas formas de sociedade, nossos modos de viver juntos, nossos modos de sonhar que dizem mais sobre nosso próprio segredo do que às vezes queremos admitir (DURAND, 2003, p. 13).
  • A imaginação formal, que nutre a formalização, resulta de uma operação desmaterializadora, que intencionalmente "sutiliza" a matéria ao torná-la apenas objeto de visão, ao vê-la apenas enquanto figuração, formas e feixes de relações entre formas e grandezas, como uma fantasmática incorpórea, clarificada mas intangível. E é, na verdade, resultado da postura do homem como mero espectador do mundo, do mundo-teatro, do mundo-espetáculo, do mundo-panorama, exposto à contemplação ociosa e passiva" (BACHELARD, 1985, p. xv).
  • A imaginação material recupera o mundo como provocação concreta e como resistência, a solicitar a intervenção ativa e modificadora do homem: do homem-demiurgo, artesão, manipulador, criador, fenomenotécnico, obreiro - tanto na ciência quanto na arte. Mais: foi na linhagem do filósofo-voyeur que se desenvolveu toda a tradição intelectualista que concebe a imagem como simples simulacro sem vida e essencialidade próprias - apenas o duplo ou fantasma de um objeto já percebido - e cujo significado deve sempre ser traduzido em conceito". (Id., p. xv, xvi).

Museu Imaginário

  • Malraux propõe o museu como um espaço de encontro e de confronto entre obras de arte de épocas, estilos e artistas diversos; para ele o museu é uma confrontação de metamorfoses (AZZI, 2011, p. 233).
  • Reunião de obras representativas de uma imensa pluralidade estética e histórica (Id., p. 239).
  • Para Malraux, museu imaginário significa o conjunto de obras que as pessoas podem conhecer mesmo sem ir a um museu, mas através de reproduções e bibliotecas (Id., p. 241).
  • É nesse sentido que segue a reflexão sobre o museu imaginário, remetendo à possibilidade de indivíduos terem acesso a imagens que nunca viram pessoalmente, formando uma espécie de "catálogo particular" (Id., p. 242).
  • Como afirma Malraux, o museu imaginário é um espaço que nos habita muito mais do que o habitamos ao contrário do museu tradicional (Id., p. 242).
  • O museu imaginário possibilita a aproximação harmoniosa de um conjunto heterogêneo de obras de arte (Id., p. 244).
  • O que o museu imaginário põe em cena é uma arte sem limites, sem hierarquias e que, nesse sentido, não pertence a um tempo fechado e subjetivo (Id., p. 244).
  • A problemática levantada pelo museu imaginário é exatamente a da abolição da dicotomia e da hierarquia, e a possibilidade do estabelecimento de um diálogo que reúne.
  • Oriente e Ocidente, pintura e escultura, filme e pintura, e até mesmo as mais modernas técnicas audiovisuais que permitem a difusão da arte [...] (SILVA, 2002, in: AZZI, s.d., p. 244).
  • Desdobramentos para o museu imaginário (...) um museu mental feito de reproduções. Um museu mental que, atualmente, pode ser representado por um espaço virtual, e que, dessa forma, fica entre o real e o imaginário. Esse museu acaba por apresentar suas próprias questões, através das reproduções, dos hiperlinks e da interatividade/participação democrática suscitada pelo museu imaginário original. No museu imaginário virtual o observador pode escolher as imagens de acordo com um repertório pré-estabelecido, que naturalmente remete ao projeto memorialístico do próprio Malraux. E, ao se conectar ao museu de Malraux, o observador/visitante não é conduzido, mas conduz a si mesmo. Essa nova possibilidade de museu, que envolve tantos e complexos conceitos, parece condensar em sua breve e contida existência perguntas e propostas que nunca serão realizadas ou respondidas. Como numa metanarrativa, ou num palimpsesto, na medida em que a cada camada retirada surge outra com novos significados e novas interrogações (AZZI, 2011, p. 246).

Imaginário das Águas

  • A água, essa filha primeira, nascida da fusão aérea, não pode renegar sua origem voluptuosa e, na terra, ela se mostra com uma celeste onipotência como o elemento do amor e da união... Não é em vão que os sábios antigos procuram nela a origem de todas as coisas... E as nossas sensações, agradáveis ou não, não são mais, afinal, que as diversas maneiras de escoar em nós dessa água original que existe em nosso ser. O próprio sono não passa do fluxo desse mar invisível, universal, e o despertar é o começo do seu refluxo (Novalis, 1939 apud CHEVALIER & GHEERBRANT, 1998, p. 21).
  • Tales de Mileto considerou a existência de um princípio único, causa de todas as coisas - a água. Para ele o princípio-água contrapunha-se ao caos hesiodiano e a qualquer princípio mítico. Para o autor, tal princípio não se atinha a representações extraídas da imaginação, ou a figurações fantástico-poéticas tais como Oceano, Tétis e Estige. Oceano, filho do Céu e da Terra, tomou por esposa Tétis, deusa das Águas, nascendo desta união os Rios e as Oceânidas. Costuma representar-se o Oceano sob a figura de um velho sentado sobre as vagas e ostentando na mão um remo. A seus pés aparece um monstro marinho de forma estranha e fantástica. Estige, na Teogonia hesíodica é o filho mais velho de Oceano e Tétis. É um dos rios dos Infernos. Foi nesse rio que Tétis mergulhou Aquiles para o tornar invulnerável (RIBEIRO ANDRADE, 2001).
  • Empédocles "acolhe a água de Tales, o ar de Anaxímenes, o fogo de Heráclito e, em certo sentido, a terra de Xenófanes, mas muda substancialmente as precedentes concepções do princípio. De fato, o princípio dos jônicos transformava-se qualitativamente, tornando-se todas as coisas; enquanto, em Empédocles, água, ar, terra e fogo permanecem qualitativamente inalteráveis e intransformáveis. Nasce assim a noção de "elemento", como algo originário e qualitativamente imutável, capaz apenas de unir-se e separar-se espacial e mecanicamente de outro: trata-se de uma noção que só podia nascer depois da experiência eleata e em vista de superá-la. E nasce também a assim chamada concepção pluralista, que supera definitivamente a monística visão dos jônicos: a raiz ou o princípio das coisas não é único, mas estruturalmente múltiplo; e também o pluralismo é uma perspectiva que só podia afirmar-se, no nível da consciência crítica, depois do monismo radical dos eleatas e em vista de superá-lo" (REALE, 1993, p. 134).
  • Mircea Eliade considera que as águas simbolizam a soma universal das virtualidades; elas são fons e origo, e reservatório de todas as possibilidades de existência; elas precedem toda forma e sustentam toda criação. A água é a origem da vida e o elemento de regeneração corporal e espiritual, o símbolo da fertilidade, da pureza, da sabedoria e da virtude (ELIADE, 1996).
  • Hesíodo (apud CHEVALIER & GHEERBRANT, 1998), distinguiu, na Teogonia, água estéril e água fecundante, intimamente ligadas à intervenção do amor. A água feminina, a água doce, a água lacustre, a água estagnada diferenciadas das águas do oceano, espumante, fecundante, masculina.
  • Nas tradições judaica e cristã, a água simboliza, primeiramente a origem da criação: fonte de todas as coisas ela é mãe e matriz; é útero. Mas, como é fonte de vida, é também fonte de morte. É criadora e é destruidora. Todo o Antigo Testamento celebra a magnificência da água. Na Bíblia os poços, as fontes, os rios são agentes de fertilização de origem divina, trazendo consigo a fecundidade e manifestando a benevolência divina. Os poços são lugares sagrados e perto deles nasce o amor e os casamentos principiam. É também símbolo de segredo, de dissimulação da verdade (RIBEIRO ANDRADE, 2001).
  • As fontes são o símbolo da maternidade. Sua sacralização é universal pois constituem a água virgem e, em muitas culturas são protegidas por tabus. Na América Central os Maias proíbem a pesca nas fontes ou poda de árvores à sua volta. A água da fonte é a substância da pureza (Id.).
  • O simbolismo do rio é, ao mesmo tempo, o da fertilidade, da morte e da renovação. Entre os gregos os rios eram objeto de culto, quase divinizados, como filhos do Oceano e pais das Ninfas. Não se podia atravessá-los senão após cumpridos os ritos da purificação e da prece (Id.).
  • Mas, se pudermos convencer nosso leitor de que existe, sob as imagens superficiais da água, uma série de imagens cada vez mais profundas, cada vez mais tenazes, ele não tardará a sentir, em suas próprias contemplações, uma simpatia por esse aprofundamento; verá abrir-se, sob a imaginação das formas, a imaginação das substâncias. Reconhecerá na água, na substância da água, um tipo de intimidade, de intimidade bem diferente das que as "profundezas" do fogo ou da pedra sugerem. Deverá reconhecer que a imaginação material da água é um tipo particular de imaginação. Fortalecido com esse conhecimento de uma profundidade num elemento material, o leitor compreenderá enfim que a água é também um tipo de destino, não mais apenas o vão destino das imagens fugazes, e vão destino de um sonho que não se acaba, mas um destino essencial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser. Por isso o leitor compreenderá com mais simpatia, mais dolorosamente, uma das características do heraclitismo. Verá que o mobilismo heraclitiano é uma filosofia concreta, uma filosofia total. Não nos banhamos duas vezes no mesmo rio, porque, já em sua profundidade, o ser humano tem o destino da água que corre. A água é realmente o elemento transitório. É a metamorfose ontológica essencial entre o fogo e a terra. O ser voltado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente. (...) a água corre sempre, a água cai sempre, acaba sempre em morte horizontal. Em numerosos exemplos veremos que para a imaginação materializante a morte da água é mais sonhadora que a morte da terra: o sofrimento da água é infinito (BACHELARD, 1989, p. 6, 7).
  • É na carne, nos órgãos, que nascem as imagens materiais primordiais. Essas primeiras imagens materiais são dinâmicas, ativas; estão ligadas a vontades simples, espantosamente rudimentares. A psicanálise provocou muitas revoltas quando falou da libido infantil. Talvez se compreendesse melhor a ação dessa libido se lhe devolvêssemos sua forma confusa e geral, se a ligássemos a todas as funções orgânicas. A libido surgiria então como solidária com todos os desejos, todas as necessidades. Seria considerada como uma dinâmica do apetite e encontraria seu apaziguamento em todas as impressões de bem-estar. Uma coisa é certa, em todo caso: o devaneio na criança é um devaneio materialista. A criança é um materialista nato. Seus primeiros sonhos são os sonhos das substâncias orgânicas. (Id., p. 9).
  • Se a água se torna preciosa, torna-se seminal (Id., p. 10).
  • A água não é apenas um grupo de imagens conhecidas numa contemplação errante, numa sequência de devaneios interrompidos, instantâneos; é um suporte de imagens e logo depois um aporte de imagens, um princípio que fundamenta as imagens. A água torna-se assim, pouco a pouco, uma contemplação que se aprofunda, um elemento da imaginação materializante. (...).
  • Mas o poeta mais profundo encontra a água viva, a água que renasce de si, a água que não muda, a água que marca com seu signo indelével as suas imagens, a água que é um órgão do mundo, um alimento dos fenômenos corredios, o elemento vegetante, o elemento lustrante, o corpo das lágrimas... (Id., p. 12).
  • ... é permanecendo bastante tempo na superfície irisada que compreenderemos o preço da profundidade (Id., p. 12).
  • A imaginação é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade (Id., p. 18).
  • Fundamento de toda manifestação cósmica, receptáculo de todos os gérmenes, as águas simbolizam a substância primordial de que nascem todas as formas e para a qual voltam, por regressão ou por cataclismo (ELIADE, 1994, p. 243).
  • Na cosmogonia, no mito, no ritual, na iconografia, as águas desempenham a mesma função, qualquer que seja a estrutura dos conjuntos culturais nos quais se encontram: elas precedem qualquer forma e suportam qualquer criação. A imersão na água simboliza o regresso ao pré-formal, a regeneração total, um novo nascimento, porque uma imersão equivale a uma dissolução das formas, a uma reintegração no modo indiferenciado da pré-existência; e a emersão das águas repete o gesto cosmogónico da manifestação formal. O contato com a água implica sempre a regeneração: por um lado, porque à dissolução se segue um "novo nascimento"; por outro lado, porque a imersão fertiliza e aumenta o potencial de vida e de criação (Id., p. 244).
  • Ela cura, rejuvenesce, assegura a vida eterna. (...) na água reside a vida, o vigor e a eternidade. Esta água não é, naturalmente, acessível a toda a gente, nem de qualquer maneira. Está guardada por monstros. Acha-se em territórios de difícil penetração, na posse de demónios ou de divindades (Id., p. 249).

Sexualidade

  • A sexualidade faz parte de nossa conduta. Ela faz parte da liberdade em nosso usufruto deste mundo. A sexualidade é algo que nós mesmos criamos - ela é nossa própria criação, ou melhor, ela não é a descoberta de um aspecto secreto de nosso desejo. Nós devemos compreender que, com nossos desejos, através deles, se instauram novas formas de relações, novas formas de amor e novas formas de criação (FOUCAULT, 2004, p. 260).
  • Sexualidade como dispositivo histórico: "um conjunto decididamente heterogêneo, que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas; enfim, o dito e o não-dito são elementos do dispositivo. O dispositivo, portanto, é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos (FOUCAULT, 2011, p. 244).

Arte erótica

  • Existem historicamente, dois grandes procedimentos para produzir a verdade do sexo. Por um lado as sociedades - e elas foram numerosas: a China, o Japão, a Índia, Roma, as nações árabes-muçulmanas - que se dotaram de uma ars erotica. Na arte erótica, a verdade é extraída do próprio prazer, encarado como prática e recolhido como experiência; não é por referência a uma lei absoluta do permitido e do proibido, nem a um critério de utilidade, que o prazer é levado em consideração, mas, ao contrário, em relação a si mesmo: ele deve ser conhecido como prazer, e portanto, segundo sua intensidade, sua qualidade específica, sua duração, suas reverberações no corpo e na alma (FOUCAULT, 1988, p.65, 66).
  • Os efeitos dessa arte magistral, bem mais generoso do que faria supor a aridez de suas receitas, devem transfigurar aquele sobre quem recaem seus privilégios: domínio absoluto do corpo, gozo excepcional, esquecimento do tempo e dos limites, elixir de longa vida, exílio da morte e de suas ameaças (Id., p. 66).

Gênero

  • Não é o momento do nascimento e da nomeação de um corpo como macho ou como fêmea que faz deste um sujeito masculino ou feminino. A construção do gênero e da sexualidade dá-se ao longo de toda a vida, continuamente, infindavelmente (LOURO, 2008, p.18).
  • Gênero é o mecanismo pelos quais as noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, mas ele poderia ser muito bem o dispositivo pelo qual estes termos são desconstruídos e desnaturalizados (BUTLER, 2003, p.59).
  • A perspectiva feminista pós-estruturalista exige que se opere com o conceito de gênero tendo em vista o caráter cultural e social de produção das diferenças e desigualdade entre homens e mulheres, caracterizadas por serem construídas discursivamente e não biologicamente determinadas. O foco na relação entre os gêneros não deve estar na simples dominação, mas sim nas relações de poder onde as diferenças e desigualdades são produzidas e legitimadas. Portanto, o que se procura é operar com o caráter relacional do conceito, além de romper com a homogeneidade, a essencialização e a universalização, explorando a pluralidade, a conflitualidade e a provisoriedade dos processos que delimitam possibilidades de se definir e viver o gênero em cada sociedade e nos diferentes segmentos culturais e sociais ( MEYER, RIBEIRO e RIBEIRO, 2004).
  • Construção social feita sobre diferenças sexuais. Gênero refere-se, portanto, ao modo como as chamadas "diferenças sexuais" são representadas ou valorizadas; refere-se àquilo que se diz ou se pensa sobre tais diferenças, no âmbito de uma dada sociedade, num determinado grupo, em determinado contexto (LOURO, 2000, p. 26).
  • Gênero engloba todos os processos pelos quais a cultura constrói e distingue corpos e sujeitos femininos e masculinos (MEYER, 2012, p. 51).
  • Gênero pode ser compreendido como elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos (...) e como uma forma primária de dar significados às relações de poder (SCOTT, 1995, p. 86).

Rizoma

  • O rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer, e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza, ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. O rizoma não se deixa reduzir nem ao Uno nem ao múltiplo... Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças. Não tem começo nem fim, mas sempre um meio, pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades (ZOURABICHVILI, 2004, p. 51).
  • O rizoma, labirinto-rede, em que cada caminho pode se ligar com qualquer outro, de maneira que o labirinto já não possui centro e periferia, tampouco saída, porque ele é potencialmente infinito. O labirinto constituído pelo rizoma já é processo, e não apenas distribuição espacial (ECO, 1985, p. 46, 47).
  • A metáfora do rizoma toma como paradigma aquele tipo de caule radiciforme de alguns vegetais, formado por uma miríade de pequenas raízes emaranhadas em meio a pequenos bulbos armazenatícios, colocando em questão a relação intrínseca entre as várias áreas do saber, representadas cada uma delas pelas inúmeras linhas fibrosas de um rizoma, que se entrelaçam e se engalfinham formando um conjunto complexo no qual os elementos remetem necessariamente uns aos outros e mesmo para fora do próprio conjunto (GALLO, p. 30. In: ALVES & GARCIA, 2000).

Metamorfose

  • Capacidade que cada manifestação de arte apresenta de se transformar, criando um novo domínio de referências e, dessa forma, se inserir na história da arte induzindo a uma nova forma de recepção (AZZI, 2011, p. 246).
  • Capacidade que cada evento ou obra histórica tem de se reinventar a fim de resgatar, para as percepções futuras, o melhor de si (Id., p. 247).
  • Os museus são então o espaço no qual essa metamorfose se constrói e reconstrói constantemente, pois ela só é possível diante do confronto com o tempo e a pluralidade cultural. Se, para Malraux, a metamorfose configura a própria vida da obra de arte, isto ocorre a partir da ressurreição constante do objeto no diálogo com obras rivais expostas no mesmo lugar e com olhares anacrônicos dos mais diferentes visitantes, venham eles para contemplar, interrogar, repudiar, admirar ou ignorar. A metamorfose é a tensão possível entre passado e presente; é a dimensão dialética da imagem em busca de sua capacidade máxima. A transmissão da herança cultural carrega em sua essência a esfera da transformação, do caráter de mudança que adquire todo patrimônio ao passar de uma referência a outra, de um domínio a outro, de um tempo/lugar a outro. Ou, mesmo, de uma civilização a outra, na medida em que a arte hoje caminha para a apreensão de uma arte universal, como defendia Malraux. (Id., p. 248).

Viagem

  • Alguém que se desloca entre imagens, culturas, territórios, artes várias. Viajante - aquele que se movimenta, mas também como alguém que é sempre estrangeiro, no sentido de estranho, de forasteiro (Id., p. 243).
  • A viagem transforma o corpo, o "caráter", a identidade, o modo de ser e de estar... Suas transformações vão além das alterações na superfície da pele, do envelhecimento, da aquisição de novas formas de ver o mundo, as pessoas e as coisas. As mudanças da viagem podem afetar corpos e identidades em dimensões aparentemente definidas e decididas desde o nascimento (ou até mesmo antes dele) (LOURO, 2008, p. 15).
  • A imprevisibilidade é inerente ao percurso. Tal como numa viagem, pode ser instigante sair da rota fixada e experimentar as surpresas do incerto e do inesperado. Arriscar-se por caminhos não traçados. Viver perigosamente. Ainda que sejam tomadas todas as precauções, não há como impedir que alguns se atrevam a subverter normas (Id., 16).

Experiência

  • A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2002, p. 24).
  • Experiência limite é, então, uma noção que diz respeito à experiência que arranca o sujeito de si, que convida a por em questão a categoria de sujeito, sua supremacia, sua função fundadora. Mas tal experiência não se limita ao âmbito da especulação; colocar em questão o sujeito significa experimentar qualquer coisa que o conduziria à sua destruição real, à sua dissociação, ao seu retorno em outra coisa. Experiência, portanto, radical, porque coloca em crise a noção de sujeito, quando não, o próprio sujeito da experiência. Ela está intimamente ligada à experiência de uma linguagem na qual o sujeito está excluído. Ela revela a incompatibilidade entre a aparição da linguagem em seu ser e a consciência de si em sua identidade. A "experiência limite" é a experiência marcada pela dispersão do Eu, que se mantém fora de qualquer subjetividade e no limiar de qualquer positividade (DANTAS, 2008, p. 5).

Dionísio

  • É o Deus da vida superabundante e efervescente, luxuriante e indestrutível ou não fosse ele o Deus da vinha, da vida vegetal, da humanidade geradora da vida (RIBEIRO, 2011).
  • No meio do fluxo incessante dos fenômenos, eu, Dionísio, sou o princípio eternamente criativo, eternamente fazendo existir e eternamente me alegrando na transformação das aparências (MAFFESOLI, 1985, p. 10).
  • Há uma lógica passional dando vida ao corpo social (id., p. 15).
  • Destaque ao "carpe diem" - desdenha o projeto econômico e político - (...) mostra a ineficácia das ideologias "virtuístas", que procuram gerar, domesticar e racionalizar justamente aquilo que lhe escapa: o jogo da paixão. (id., p. 23).
  • A ultrapassagem da moral reforça o laço ético, porque, ao permitir ao imaginário, ao ludismo e aos fantasmas uma forma de expressão, a teatralidade da desordem relembra tudo o que dá qualidade ao ser/estar junto (id., p. 24).
  • O retorno do mito ou do simbólico (...) outra maneira de as sociedades se dizerem e se sentirem (id., p. 27).
  • O erótico acha-se no âmago das múltiplas práticas societais (id., p. 28).
  • Ante o laborioso Prometeu é preciso mostrar que o ruidoso Dionísio também é uma figura necessária da socialidade (id., p. 37).
  • Frente a um tempo histórico dominado pela produção (...) encontra-se um tempo poético e erótico, um tempo do corpo amoroso, um tempo segundo e oculto, em torno do qual se organiza a perduração da socialidade (id., p. 47).
  • Mistério dionisíaco: enfrentar coletivamente pela pluralidade dos afetos e dos corpos, o problema intransponível do limite (id., p. 49).
  • Dionísio: Deus do desenvolvimento vital, da vegetação exuberante, do crescimento ordenado e fecundo (id., p. 79).
  • Orgia não pode ser reduzida à atividade sexual. O eros solidifica e estrutura a socialidade (id., p. 80).
  • Partição dos afetos - fundamento de toda ordem simbólica - sensualidade: inaugura a relação com os outros, com o mundo (id., p. 82).
  • Há um fluxo contínuo, um impulso vital, uma atividade criadora que se constitui de minúsculas atitudes - das quais a libertinagem é um momento paroxístico (id., p. 96).
  • Não obstante o puritanismo prometeico e o mercantilismo dominante, um banquete organizado é como um resumo do mundo no qual cada uma das partes se vê figurada por seus representantes. A arte de beber exprime uma ordem cósmica (id., 138).
  • Século XIX - multiplicidade de atitudes dionisíacas - pedras fundamentais de fenômenos que se esboçam ou se desenvolvem em nossos dias (id., 166).
  • Gilbert Durand - o ruidoso Dionísio, que já se agitava no tempo das luzes, está presente em todo o curso do século XIX (...) o que aponta para um determinado sentido: nova relação com o corpo - objeto de fruição; danças modernas; festas de recorte orgíaco. A confusão orgíaca insere-se na banalidade do cotidiano (id., p. 173).
  • A aventura dionisíaca (re)começa sem jamais cessar (id., p. 175).
  • Ressaltar o que a vida cotidiana tem de fecundo (id., p. 176).
  • O ardente Dionísio não conhece fronteiras (id., p. 176).
  • O dionisíaco vai além da assepsia (id., p. 177).

Poder/Resistência

  • Quando penso na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de existir, no ponto em que o poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida quotidiana (FOUCAULT, 2011, p. 131).
  • A normalização disciplinar consiste em traçar primeiro um modelo, um modelo ótimo que está construído em função de um determinado resultado, e a operação de normalização disciplinar consiste em tratar de conformar as pessoas, os gestos, os atos a este modelo. O normal é, precisamente, o que é capaz de adequar-se a esta norma, e o anormal, o que não é. Em outros termos, o que é fundamental e primeiro na normalização disciplinar não é o normal e o anormal, mas sim a norma. Para dizer de outra maneira, a norma tem um caráter primariamente prescritivo, e a determinação e distinção entre o normal e o anormal resultam em possibilidades decorrentes dessa norma postulada. A causa do caráter primário da norma em relação com o normal, o fato de que a normalização disciplinar parte da norma à diferenciação final entre normal e anormal, gostaria de dizer, acerca do que ocorre nas técnicas disciplinares, que se trata mais de uma normação que de uma normalização (FOUCAULT, 2004, p. 59).
  • O poder surge como uma força produtiva - as relações de poder afiguram-se como poder produtivo - que, enquanto tal, torna a transformação possível, mas extremamente difícil. Nesse contexto, o corpo, a consciência ou o sujeito são o produto de forças, sendo, simultaneamente, profundamente reais e efeito de relação do poder. Por outras palavras, enquanto relações produtivas, as relações de poder produzem coisas como a consciência, a subjetividade e os corpos. Isso significa que o poder não atua sobre objetos. As relações de poder são relações de uma ação sobre ações já existentes ou sobre ações que podem emergir, tanto no presente como no futuro (VILELA, 2006, p. 117).
  • A noção de poder é analisada a partir da identificação de três níveis distintos: os estados de dominação, isto é, aquilo a que comumente se denomina poder, enquanto força negativa; as relações estratégicas, ou seja, as relações de poder enquanto jogos estratégicos entre liberdades; e as técnicas de governo, ou seja, as tecnologias governamentais que se situam entre as relações de poder e os estados de dominação (Id., p. 115).
  • Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede do poder (...). E como onde há poder há resistência, não existe propriamente o lugar da resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda estrutura social (FOUCAULT, 2006).
  • O convite de Foucault é que, através da investigação dos discursos, nos defrontemos com nossa história ou nosso passado, aceitando pensar de outra forma o agora que nos é tão evidente. Assim, libertamo-nos do presente e nos instalamos quase num futuro, numa perspectiva de transformação de nós mesmos. Nós e nossa vida, essa real possibilidade de sermos, quem sabe um dia, obras de arte (FISCHER, 2001, p. 222).
  • Por "verdade" entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados. A "verdade" está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem (FOUCAULT, 2006, p. 14).

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