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Imaginário
das Águas

(...) o princípio-água contrapunha-se ao caos hesiodiano e a qualquer princípio mítico - Tales2 (...)

O princípio-água1

Tales2 de Mileto considerou a existência de um princípio único, causa de todas as coisas - a água. Para ele o princípio-água contrapunha-se ao caos hesiodiano e a qualquer princípio mítico. Para o autor, tal princípio não se atinha a representações extraídas da imaginação, ou a figurações fantástico-poéticas tais como Oceano, Tétis e Estige3. As proposições de Tales fundavam-se sobre o lógos pressupondo o nascimento da própria filosofia. Aristóteles fala do significado de "princípio":

a) fonte ou origem das coisas, b) foz ou termo último das coisas, c) permanente sustento (substância, diremos com um termo posterior) das coisas. Em suma, o "princípio" é aquilo do qual as coisas vêm, aquilo pelo que são, aquilo no qual terminam. Tal princípio foi denominado com propriedade por esses primeiros filósofos (senão pelo próprio Tales) de physis, palavra que não significa "natureza" no sentido moderno do termo, mas realidade primeira, originária e fundamental; significa, como foi bem assinalado, "que é primário, fundamental e persistente, em oposição ao que é secundário, derivado e transitório (in: REALE, 1993: p. 48).

Para Tales, o princípio-água contrapunha-se ao princípio mítico; no entanto as águas imaginárias transbordaram de significações e simbologias no universo cultural do ser humano:

Nessa época de convulsões sociais e mudanças drásticas é importante sabermos mais a respeito do ser humano, pois muito depende das suas qualidades mentais e morais. Para observarmos as coisas na sua justa perspectiva precisamos, porém, entender tanto o passado do homem quanto o seu presente. Daí a importância essencial de compreendermos mitos e símbolos (JUNG, [s.d.]: p. 58).

As imagens, os símbolos e os mitos revelam o mais íntimo das pessoas. O pensamento simbólico é consubstancial ao ser humano precedendo a linguagem e a razão discursiva (ELIADE, 1996).

Tudo pode assumir uma significação simbólica representando sentimentos e emoções, juntando Matéria e Sentido: pedras, plantas, animais, lua, sol, vento, água... O ato humano de olhar com os olhos de uma determinada cultura torna o rio, a lagoa, o mar, a cachoeira algo mais do que uma paisagem:

esta relação do self com a natureza à sua volta e mesmo com o cosmos vem, provavelmente, do fato de o "átomo nuclear" da nossa psique estar, de certo modo, interligado ao mundo inteiro, tanto interior como exteriormente [...] De um modo que foge completamente à nossa compreensão, o nosso inconsciente também está sintonizado com o nosso meio ambiente - nosso grupo, a sociedade em geral e, além de tudo, com o contínuo espaço-tempo e a natureza no seu todo (JUNG et al., [s.d.]: p. 207/208).

Os elementos água, terra, ar e fogo constituem as quatro raízes ou elementos primordiais que Empédocles4 de Agrigento apontava como as quatro grandes províncias-matrizes do cosmos:

Saiba, pois, primeiramente que quatro são as raízes de todas as coisas, Zeus candente, Hera vivificadora e Aidoneus. E Netis que de suas lágrimas destina a fonte mortal (In: REALE, 1993: p. 134).

Os quatro elementos: hormônios da imaginação

Os quatro elementos permanecem princípios da criação artística. Bachelard5 estuda esse imaginário e passa a valorizá-lo como uma forma própria de apreensão e criação da realidade, imaginando incessantemente e enriquecendo-se com novas imagens. Os quatro elementos são os hormônios da imaginação. A primeira obra dedicada à imaginação dos elementos foi publicada em 1938 intitulada "A Psicanálise do Fogo" (1999). Este livro é uma ilustração das teses gerais defendidas na obra "A Formação do Espírito Científico" (1937, 1996). Bachelard diz que não seria difícil refazer para a água, dentre outros elementos, o que esboça para o fogo, recusando o plano histórico, mas buscando exemplos na História:

Talvez se possa perceber aqui um exemplo do método que pretendemos seguir para uma psicanálise do conhecimento objetivo. Trata-se, com efeito, de encontrar a ação dos valores inconscientes na própria base do conhecimento empírico e científico. Cumpre-nos, pois, mostrar a luz recíproca que vai constantemente dos conhecimentos objetivos e sociais aos conhecimentos subjetivos e pessoais, e vice-versa. Cumpre mostrar, na experiência científica, os vestígios da experiência infantil. Deste modo estaremos autorizados a falar de um inconsciente do espírito científico, do caráter heterogêneo de certas evidências, e veremos convergir, sobre o estudo de um fenômeno particular, convicções formadas nos mais variados domínios (BACHELARD, 1999: p. 15).

Inicia-se, dessa forma, a longa série que comporá sobre o imaginário artístico e sobre o sonho acordado - o devaneio. O autor propõe que:

se considere a imaginação como um poder maior da natureza humana (...) a imaginação, em suas ações vivas, nos desliga ao mesmo tempo do passado e da realidade. Aponta para o futuro. À função do real, instruída pelo passado, tal como é destacada pela psicologia clássica, é preciso juntar uma função do irreal, também positiva, como tentamos estabelecer em obras anteriores. Uma enfermidade por parte da função do irreal entrava o psiquismo produtor. Como prever sem imaginar? (BACHELARD, 1978: p. 195).

A imaginação, dessa forma, é dinamismo organizador, potência dinâmica que "deforma" as cópias pragmáticas fornecidas pela percepção. As estruturas do imaginário6 são, portanto, conteúdos dinâmicos como meio fundamental para a compreensão das bases míticas do pensamento humano. Visto das mil janelas do imaginário, o mundo é mutável. BACHELARD (1985) insiste em marcar a autonomia da imaginação criadora em relação à percepção (visual):

a imagem percebida e a imagem criada são duas instâncias psíquicas muito diversas e seria necessária uma palavra especial para designar a imagem imaginada. Tudo que é dito nos manuais sobre a imaginação reprodutora deve ser creditado à percepção e à memória. A imaginação criadora tem funções completamente diversas da imaginação reprodutora. A ela pertence essa função do irreal que é psiquicamente tão útil quanto a função do real, evocada com tanta frequência pelos psicólogos para caracterizar a adaptação de um espírito à realidade etiquetada por valores sociais. (p. xxii).

Dessa forma a concepção bachelardiana de imaginação distingue a imaginação formal7 e a imaginação material8. BACHELARD (1985, 1996) não perde de vista o fato de que a imaginação torna-se fundamental na criação científica considerando a razão uma atividade psicológica que procura revirar os problemas, variá-los, ligar uns aos outros, fazê-los proliferar:

aproveitar todas as profundidades, compreender que a perspectiva é solidária de uma dinâmica do olho, que nada é fixo para aquele que alternadamente pensa e sonha (BACHELARD, 1985: p. 95).

O novo espírito científico não é fruto de mera contemplação. Ao romper com a tradição intelectualista, cartesiana, o autor não apenas distingue imaginação reprodutora e imaginação criadora; imaginação formal e imaginação material, mas considera que a primeira corresponde ao império da visão, que chama de vício da ocularidade; o novo espírito científico busca o pormenor, evidenciando a intervenção do sujeito na configuração do objeto do conhecimento.

Bachelard, portanto, não foi apenas o filósofo do novo espírito científico, mas soube extrair novos significados das obras de arte. No ensaio que escreveu sobre Monet9 (1985) intitulado As Ninféias ou as Surpresas de uma Alvorada de Verão escreveu: "Não se sonha junto à água sem formular uma dialética do reflexo e da profundidade".

Monet pintou "a pintura" das águas, reproduzindo incessantemente os quadros líquidos da natureza. Escreveu a um amigo: "Essas paisagens de água e de reflexos tornaram-se uma obsessão". Pessanha (1988) analisa esse infindável caminho da reflexão:

O duplo que a água constrói é duplicado na tela do artista, criando enigmas de espelhamento, ecos visuais sem fim. Sobretudo quando a paisagem se reflete numa água tranquila sob a luz mortiça do amanhecer, o olhar capta e a mão logo reproduz imagens fantásticas que pedem decifração, que testam o intérprete (p. 161).

No quadro À Beira da Água, Bennecourt (1868) percebe-se que a água, para Monet é um meio para a abstração. O espelho d'água confunde as regras do jogo da pintura paisagista. Monet continuará a aplicar este princípio sempre que pinta a água, as falésias e particularmente seus famosos nenúfares.

Assim, as criações do pensamento humano, os significados das obras de arte, quer seja na literatura, na poesia, na pintura, são discutidas por Bachelard em seu livro dedicado à Água e os Sonhos (1989) dedicando-se às águas claras, às águas brilhantes, primaveris e correntes. Depois às águas profundas, dormentes, mortas: a água pesada no devaneio de Edgard Poe. Segue discutindo as águas compostas, água maternal e água feminina. A pureza e a purificação, a água doce e a água violenta.

Inspirada em Bachelard, este Museu Imaginário das Águas, Gênero e Sexualidade buscou na iconografia ocidental, obras de arte disponíveis em museus visitados, em livros de história da arte, em livros com a obra de pintores - e estranhou a precariedade de acesso a obra de pintoras - e organizou-as conforme os seguintes temas: Água Purificadora, Água Erótica, Água Protetora, Água Mitológica, Água Especular, Água Indefinida e Água Viva.

Para cada tema há o que intitulei "Mergulhos" para que nos inundemos da sua simbologia e, a seguir, algumas obras de arte pertinentes ao tema. Nem de longe pretendeu-se dar conta da amplitude do capital cultural da humanidade, mas de algumas obras que possibilitam navegar pelo imaginário das águas.

Notas

1 Este texto integra a tese de doutorado: RIBEIRO ANDRADE, Cláudia Maria. O imaginário das águas, Eros e a criança. Campinas (SP): UNICAMP, 2001.

2 Cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. I: Das Origens a Sócrates. Tradução: Marcelo Perini, 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola. 1993. "Provavelmente não nos enganamos situando a atividade de Tales na primeira metade do século VI. Foi, além de filósofo e cientista, destacado político" (p. 47).

3 Oceano, Tétis e Estige - Oceano, filho do Céu e da Terra, tomou por esposa Tétis, deusa das Águas, nascendo desta união os Rios e as Oceânidas. Costuma representar-se o Oceano sob a figura de um velho sentado sobre as vagas e ostentando na mão um remo. A seus pés aparece um monstro marinho de forma estranha e fantástica. Estige, na Teogonia hesíodica é o filho mais velho de Oceano e Tétis. É um dos rios dos Infernos. Foi nesse rio que Tétis mergulhou Aquiles para o tornar invulnerável.

4 Cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. I: Das Origens a Sócrates. Tradução: Marcelo Perini, 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola. 1993. Empédocles "acolhe a água de Tales, o ar de Anaxímenes, o fogo de Heráclito e, em certo sentido, a terra de Xenófanes, mas muda substancialmente as precedentes concepções do princípio. De fato, o princípio dos jônicos transformava-se qualitativamente, tornando-se todas as coisas; enquanto, em Empédocles, água, ar, terra e fogo permanecem qualitativamente inalteráveis e intransformáveis. Nasce assim a noção de "elemento", como algo originário e qualitativamente imutável, capaz apenas de unir-se e separar-se espacial e mecanicamente de outro: trata-se de uma noção que só podia nascer depois da experiência eleata e em vista de superá-la. E nasce também a assim chamada concepção pluralista, que supera definitivamente a monística visão dos jônicos: a raiz ou o princípio das coisas não é único, mas estruturalmente múltiplo; e também o pluralismo é uma perspectiva que só podia afirmar-se, no nível da consciência crítica, depois do monismo radical dos eleatas e em vista de superá-lo" (p. 134).

5 Cf. BACHELARD, Gaston. Os Pensadores. Vida e Obra. São Paulo: Abril Cultural. 1978. Bachelard - 1884 - 1962, trilhou dois sendeiros paralelos em sua obra: ciência e poesia. Buscou fazer não apenas a "psicanálise do conhecimento objetivo" como também a "psicanálise dos elementos". (terra, ar, água e fogo). Teceu considerações tanto em relação à filosofia científica quanto à pedagogia científica. "A filosofia científica deve ser essencialmente uma pedagogia científica". Sua preocupação com os fundamentos e os requisitos para o desenvolvimento de um "novo espírito científico" levaram-no a combater as formas tradicionais de ensino e a propor para a ciência nova uma pedagogia nova (...) Bachelard formulou seu lema de inconformismo intelectual através do que denominou de "filosofia do não". Para ele, a história das ideias não se faz por evolução ou continuísmo, mas através de rupturas, revoluções, "cortes epistemológicos". Num de seus livros escreveu: "A verdade é filha da discussão, não da simpatia". Aplicando ele próprio esse preceito, revestiu toda sua obra de caráter polêmico, fazendo reiteradas críticas à nociva influência da metafísica tradicional (particularmente a cartesiana) sobre o desenvolvimento da epistemologia científica. Em 1937 Bachelard publica uma de suas obras mais importantes, La Formación de l'Esprit Scientifique (A Formação do Espírito Científico), na qual analisa os mais diversos "obstáculos epistemológicos" que devem ser superados para que se estabeleça e se desenvolva uma mentalidade verdadeiramente científica" (p. VI, VII).

6 Cf. DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. (1997) Imaginário é o "conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens; aparece-nos como um grande denominador fundamental onde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano" (p. 18).

7 Cf. BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar. São Paulo: DIFEL, 1985. "A imaginação formal, que nutre a formalização, resulta de uma operação desmaterializadora, que intencionalmente "sutiliza" a matéria ao torná-la apenas objeto de visão, ao vê-la apenas enquanto figuração, formas e feixes de relações entre formas e grandezas, como uma fantasmática incorpórea, clarificada mas intangível. E é, na verdade, resultado da postura do homem como mero espectador do mundo, do mundo-teatro, do mundo-espetáculo, do mundo-panorama, exposto à contemplação ociosa e passiva" (p. xv).

8 Op. cit. "A imaginação material recupera o mundo como provocação concreta e como resistência, a solicitar a intervenção ativa e modificadora do homem: do homem-demiurgo, artesão, manipulador, criador, fenomenotécnico, obreiro - tanto na ciência quanto na arte. Mais: foi na linhagem do filósofo-voyeur que se desenvolveu toda a tradição intelectualista que concebe a imagem como simples simulacro sem vida e essencialidade próprias - apenas o duplo ou fantasma de um objeto já percebido - e cujo significado deve sempre ser traduzido em conceito". (p. xv, xvi).

9 Claude Monet (1840-1926) Monet reúne em sua obra o sol, o mar, as flores e as personagens numa composição muito ousada para a época. Pintou elegantes regatas e cidades balneárias na moda e as águas em seus diferentes estados.

Referências

BACHELARD, Gaston. Os Pensadores. Vida e Obra. A Filosofia do Não; O Novo Espírito Científico; A Poética do Espaço. Seleção de textos: José Américo Motta Pessanha. Traduções de Joaquim José Moura Ramos et al. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Coleção: Os Pensadores.

_______. O Direito de Sonhar. Tradução: José Américo Motta Pessanha, Jacqueline Raas, Maria Isabel Raposo, Maria Lúcia de Carvalho Monteiro. São Paulo: DIFEL, 1985.

_______. A Formação do Espírito Científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

_______. O Novo Espírito Científico. Tradução: Antonio José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70 Ltda., 1996.

_______. A Água e os Sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. Tradução: Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989. Coleção Tópicos.

_______. A Psicanálise do Fogo. 2ª edição. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Coleção Tópicos.

ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. Ensaio sobre o Simbolismo Mágico-religioso. Prefácio Georges Dumézil; tradução Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos. 12ª edição.Tradução: Maria Lúcia Pinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. [s.d.]

PESSANHA, José Américo Motta. Bachelard e Monet: o olho e a mão. In: O Olhar. Adauto Novaes et al. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.