Inicio essas possibilidades com a imagem dos sinos de Braga -
Portugal. Imaginem as muitíssimas Igrejas que têm sinos enormes, a
badalarem nas horas inteiras, nas meias e nos quartos de hora. É uma
experiência única o anúncio do dia, a partir de 8 horas da manhã. Muitos
timbres, muitas linhas melódicas, muitas intensidades dos sons. Desde
que cheguei aqui o texto de José Saramago intitulado: Da justiça à
democracia, passando pelos sinos - repetidamente, insistentemente faz-me
pensar. O autor nos conta um fato ocorrido nos arredores de Florença há
muito tempo atrás, por volta do século XVI. No cotidiano da vida
camponesa, as pessoas dedicadas às suas tarefas, ouviram soar o sino da
Igreja. Como aqui em Braga, os sinos tocavam nessa aldeia, o dia
inteiro, mas a estranheza deveu-se ao fato de que o sino tocava
melancolicamente, anunciando a morte. Mas, pelo que as pessoas sabiam
ninguém havia morrido. As pessoas deixaram seus afazeres e correram
todas para a porta da Igreja; queriam saber quem era o morto. Apareceu
então um camponês e não o sineiro e disse que não havia nenhuma morte de
carne e osso. O que havia morrido era a "justiça", pois um marquês ou
conde havia tomado posse de um pedaço de terra do camponês e este estava
anunciando tal fato. A partir daí José Saramago escreve sobre o
"adormecimento" social e convida as pessoas a pensarem sobre as
injustiças em nosso mundo. E faz a analogia dos sinos com os múltiplos
movimentos de resistência. Temos, diz ele, uma justiça protetora da
liberdade e do direito, presentes em tantas Declarações e ele fala da
Declaração Universal dos Direitos Humanos e eu acrescento: Direitos da
Criança; Direitos Sexuais e Reprodutivos dentre tantas. Uma das pérolas
do texto é quando ele aborda a participação social como se fosse viva e
atuante sob o nome de democracia e discorre sobre os partidos políticos,
os votos, etc. O final do texto é um convite para o sino tocar... Hoje!
Tudo isso perpassa meus dias, pois o fundo musical dos meus estudos,
escritas, pesquisas são os sinos de Braga!
O que quero anunciar? A ausência/presença das mulheres nas artes! Os sinos tocam para convidar as pessoas para questionamentos sobre a omissão da mulher artista na história da arte nos livros tradicionais. Jallageas (2000) escreveu o texto Respostas mínimas a questões máximas: sobre a (in)visibilidade da mulher artista na história da arte1. Inicia o texto perguntando se as mulheres trabalharam como artistas no passado? E qual o contexto geral em que trabalharam essas mulheres artistas? A autora pesquisou o catálogo do acervo permanente do The National Museum of Women in the Arts de Washington para apresentar em seu texto o período que vai desde o renascimento até ao século XIX, produção pouco conhecida e estudada.
As mulheres eram, na grande maioria das vezes, inspiradoras para a pintura masculina sendo madonas, sedutoras e musas, à margem do processo criativo.
Tensionar o olhar para as artes, nos mergulhos no imaginário das águas, requer problematizar a naturalização do "gênio" masculino, branco, europeu, heteronormativo. Luciana Loponte, no texto intitulado Gênero, Artes e Docência diz que:
Ter o olhar atravessado pelas questões de gênero ou por "intervenções feministas", como nomeia Griselda Pollock, é de alguma maneira, perder a inocência ou a crença na neutralidade política das imagens artísticas. É olhar como "antes-nunca-tinha-visto" - o que não quer dizer um olhar mais verdadeiro, mais iluminado ou mais consciente, não confundamos. A arte, este terreno aparentemente livre, de pura expressividade e autonomia criativa, é um campo minado por relações de poder (2010, p.1)
O texto - na íntegra no espaço deste Museu Imaginário intitulado Inundando de Saberes, segue apresentando autoras que questionam a hegemonia masculina nas artes e as noções de genialidade, criatividade e excentricidade, tais como: Linda Nochlin, Patrícia Mayayo, Elizabeth Saccá e Enid Zimmerman, Roziska Parker, Bea Poqueres e Withney Chadwick.
Outro texto que também está na íntegra no espaço deste Museu Imaginário é o de autoria de Isabel Silveira (2008) intitulado A imagem da mulher na pintura europeia: interface com a mitologia. A autora problematiza a imagem da mulher como representação visual da sensualidade e navega pelas relações de gênero. Como material empírico para suas análises debruça-se sobre as pinturas de Botticelli, Boucher, Cabanel, Bouguereau e Friesepe que contemplam o Mito de Vênus. Também as pinturas de Jean-Léon e Salvador Dalí com o tema Pigmaleão e Galatéia.
Várias são as discussões do texto de Silveira (2008, p. 5), focando nas condições de possibilidade da produção das pinturas dos artistas. A autora diz que:
nas artes tornou-se uma convenção, o fato de retratar o modelo feminino como objeto passivo, sem intenções próprias, esvaziada de uma natural sexualidade e retratada, por exemplo, sem características físicas como os cabelos pubianos. Desta forma, a mulher deveria alimentar fantasias masculinas como também lisonjear o homem que exibia seu poder como proprietário e espectador da obra. Podemos observar tal argumento através da obra do pintor Bouguereau, que em 1879 retrata a deusa Vênus. O papel do corpo da mulher se limita a exterioridade e a aparência.
Complexidades no modo de ver a mulher. Nas pinturas europeias e também atualmente na publicidade. Sob a ótica de uma mulher, a nudez feminina, a intimidade e a água são temas da pintora americana Alyssa Monks.
Ciente do tanto a pesquisar - citando apenas este exemplo americano - navego novamente por águas europeias e cito o livro publicado pela Editora Esfera do Caos (Lisboa-PT) organizado por Sandra Leandro e Raquel Henriques da Silva, intitulado: "Mulheres Pintoras em Portugal: de Josefa D'Óbidos a Paula Rego". O livro reúne um conjunto de estudos que recuperam do esquecimento ou que (re)interpretam as trajetórias de algumas pintoras portuguesas do século XVII ao século XXI resultante do trabalho de uma equipe de investigadores e investigadoras.
Foco agora no Brasil e afirmo que os museus exibem coleções em que há várias obras pintadas por mulheres. Anita Malfatti (1889 - 1964) e Tarsila do Amaral (1890 - 1973), inspiradas na brasilidade, contribuíram para renovar a arte brasileira. Djanira (1914 - 1979) participou em 1942 do Salão Nacional de Belas Artes e apresentou obras produzidas a partir de suas viagens pelo interior do Brasil. Outras artistas: Lygia Pape (1927 - 2004); Lygia Clark (1920 - 1988), Monica Barki (1956), Fayga Ostrower (1920 - 2001), Malu Fatorelli (1956), Ana Bella Geiger (1933), Iole Freitas (1945) dentre tantas outras, têm histórias interessantes de se contar. E esta é uma provocação para quem lê. Que outras mulheres têm histórias e estão mudando o rumo da história?
Ana Mae Barbosa mudou o curso do rio da Arte-educação nas escolas. Foi a primeira brasileira com doutorado em Arte-educação defendido em 1977 na Universidade de Boston. Ana Mae, em entrevista a Roberta Barbieri, para o Jornal do Campus da USP, edição de novembro de 2013, ao falar sobre sua trajetória, relata que solicitou uma bolsa a CAPES, que lhe respondeu, na época, que não reconhecia a Arte-educação como área de pesquisa e diz que sua maior glória é que trinta anos depois ganhou a Ordem Nacional do Mérito Científico por suas contribuições científicas.
Uma enxurrada de possibilidades para as mulheres e para as relações de gênero, para as artes, para as sexualidades. Luciana Loponte (2005, p. 49) problematiza:
Quando historiadores e críticos de arte se referem às mulheres artistas, a alusão a sua sexualidade parece algo inevitável, de alguma forma afetando o julgamento das obras.
E cita o artigo de Porqueres (1994, p. 62) que dá alguns exemplos:
Artemísia Gentileschi2 foi denegrida por seus biógrafos por haver sido violada quando era uma adolescente, o que se disse a conduziu ao desenfreio sexual (...) Elizabeth Vigée-Lebrun passou à história como uma cortesã - no duplo sentido da palavra. De Valadon se falou que era filha ilegítima, mãe solteira e amante de muitos artistas (In: LOPONTE, 2005, p. 49).
Vreeland (2007) conta a história de Artemísia e diz que aliou "personalidades reais a personalidades fabricadas" imaginando a vida da pintora com seu pai, seu marido, sua filha. A autora, entretanto, informa que "os registros existentes e os seus relacionamentos com Galileu, Cosimo de' Medici e Michelangelo Buonarroti, o Jovem, estão documentados nas histórias de arte" (Id., 2007). Também os quadros mencionados no livro foram pintados por Artemísia. Assim, três séculos e meio depois, a autora apresenta, desde o título da obra: "A Paixão de Artemísia", a história da pintora mulher escrita por uma mulher onde não há um texto que denigre sua vida - por ter sofrido violência sexual quando adolescente.
Seu pai, quando a pintora ainda era criança, contava-lhe histórias que, coincidentemente, estavam encharcadas de água:
Rebeca no poço em Nahor, de pele tão clara que quando erguia o queixo para beber, podíamos ver a água a descer pela garganta, Cleópatra a navegar no Nilo numa barca repleta de frutas e flores. Dánae e a chuva dourada, Betsabé, Judite, sibilas, musas, santas...
A relação de Artemísia com o pai foi muito contraditória. Aprendeu a pintar com ele, mas desencantou-se quando este colocou-a para ter aulas de pintura com Agostino Tassi e foi vítima de violência sexual. Num complicado julgamento ela é envergonhada e apontada como culpada de seduzir o homem. À época havia pintado o quadro "Susana e os Velhos" em que mostra como Susana ficou intimidada com os olhares obscenos de dois homens, a sua vulnerabilidade e medo. A discussão dessa obra está no texto "Susanna e os Anciãos: análise comparativa das obras de Artemísia Gentileschi (1610) e Jan Both (1642)" de autoria de Débora Viveiros Pereira (2012), na íntegra no espaço deste Museu Imaginário das Águas, Gênero e Sexualidade intitulado Inundando de Saberes; opto por trazer aqui parte da análise da autora:
A abordagem deste tema sofre, aqui, uma influência importante: o abuso sexual sofrido pela própria artista. Assim, um trauma de proporções tão íntimas para a artista pôde ser usado como inspiração para reproduzir na tela sentimentos como medo, asco e pavor na personagem de Susanna (PEREIRA, 2012, p. 6).
Artemísia retrata várias personagens femininas e seus quadros ficaram famosos. "No século XVI o mundo era dos homens. Então apareceu uma mulher que ousou desafiar as leis, a sociedade, as artes..." (VREELAND, 2007).
Novamente afirmo que gênero e sexualidade são como a água que penetra as estruturas desde as mais sólidas - aparentemente impenetráveis - até as menos resistentes. Se, durante anos, a "hipervisibilidade da mulher como objeto de representação e sua invisibilidade persistente como sujeito criador" (MAYAYO, 2003, p. 21) encharcaram as artes, o convite - sob a forma de provocação - é para olhar as pinturas apresentadas nesse Museu Imaginário das Águas, Gênero e Sexualidade e abrir mil janelas do imaginário para problematizar a não neutralidade das pinturas, seus contextos históricos e políticos. E também debruçar-se nas histórias e nas obras das mulheres a partir do levantamento elaborado por Elke Linda Buchholz (2003), a saber:
Século XVI: Catharina van Hemessen; Sofonisba Anguissola; Barbara Longhi e Lavinia Fontana (BUCHHOLZ, (2003, p. 6).
Século XVII: Artemisia Gentileschi; Clara Peeters; Judith Leyster; Elisabetta Sirani; Maria Sibylla Merian e Rachel Ruysch (Id., p. 18).
Século XVIII: Rosalba Carriera; Giulia Lama; Anna Dorothea Therbusch; Angelica Kauffmann; Anne Vallayer-Coster; Adélaïde Labille-Guiard e Elisabeth Vigée-Lebrun (Id., p. 34).
Século XIX: Constance Mayer; Marie Ellenrieder; Rosa Bonheur; Elizabeth Butler; Berthe Morisot; Mary Cassatt; Camille Claudel e Suzanne Valadon (Id., p. 52).
Século XX - antes de 1945: Gwen John; Paula Modersohn-Becker; Gabriele Münter; Natalia Goncharova; Sonia Delaunay-Terk; Hannah Höch; Käthe Kollwitz; Tamara de Lempicka; Georgia O'Keeffe; Frida Kahlo e Meret Oppenheim (Id., p. 72).
Século XX - depois de 1945: Barbara Hepworth; Helen Frankenthaler; Eva Hesse; Niki de Saint Phalle; Hanne Darboven; Louise Bourgeois; Rebecca Horn; Cindy Sherman; Jenny Holzer; Shirin Neshat e Vanessa Beecroft (Id., p. 98).
Fica o desafio!
Notas
1 Este texto encontra-se na íntegra no espaço do Museu Imaginário, Gênero e Sexualidade: Inundando de Saberes.
2 Nasceu em Roma no dia 8 de julho de 1593 e morreu em Nápoles, 1654. Primeira mulher a entrar para a Academia de Arte de Florença em meio a fortes contextos de relações de gênero e de poder. Filha do pintor Orazio Gentileschi. Retratava em suas pinturas cenas mitológicas ou bíblicas - violentas - inapropriado para mulheres que, na maioria das vezes eram modelos para as pinturas. Na sua história há um estupro sofrido aos 17 anos por Agostino Tassi. O pai da pintora levou-o ao Tribunal e o Tribunal da Inquisição torturou-a para descobrir se a culpa não tinha sido dela, se não era uma "prostituta". Ou seja, de vítima passou a ré. Nesse processo de tortura seus dedos ficaram feridos, mas ela continuou a pintar. O rótulo que carregou pela vida afora foi de "mulher fácil". Sua pintura foi influenciada por Caravaggio que influenciava seu pai. Muitas vezes a obra de Artemísia foi atribuída a ele: Orazio Gentileschi. Obra corajosa e avançada para a época (Cf. VREELAND, Susan. A paixão de Artemísia. Tradução: Beatriz Horta. RJ: Editora José Olympio. 2010).
Referências
BUCHHOLZ, Linda Elke. Women Artists. Munich-Berlin-London-New York. Prestel, 2003.
JALLAGEAS, Neide. Respostas mínimas a questões máximas: sobre a (in)visibilidade da mulher artista na história da arte. IN: Anais do XXIII Congresso Brasileiro de Ciência da Comunicação em Manaus - AM. GT Relações de Gênero. 2000. Acesso em 9/12/2013. www2.intercom.org.br/navegacaoDetalhe.htm?option=trabalho&id=47149.
LOPONTE, Luciana Gruppelli. Gênero, Artes Visuais e Docência. In: Anais do Seminário Internacional Fazendo Gênero 7. UFSC. Florianópolis, SC, 2010. Acesso em 02/12/2013. www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/L/Luciana_Gruppelli_Loponte_33.pdf.
_____________. Docência Artista: arte, estética de si e subjetividades femininas. Tese de Doutorado PPGE: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. UFRGS; Porto Alegre, RS. 2005.
MAYAYO, Patrícia. Historias de mujeres, historias del arte. Madrid: Cátedra, 2003.
SILVEIRA, Isabel Orestes. A Imagem da Mulher na Pintura Européia: interface com a mitologia. In: XI Congresso Internacional da ABRALIC. Tessituras, Interações, Convergências 2008. Acesso em 11/12/2013. www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/013/ISABEL_SILVEIRA:pdf.
PEREIRA, Débora Viveiros. "Susanna e os Anciãos: análise comparativa das obras de Artemísia Gentileschi (1610) e Jan Both (1642)". In: VIII EHA - Encontro de História da Arte. UNICAMP. (2012). Acesso em 28/12/2013. www.unicamp.br/chaa/eha/atas/2012/ATAS2012.pdf.
VREELAND, Susan. A Paixão de Artemísia. Parede, Portugal: Edições Chá das Cinco. 2007.